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'Poder das ruas' tem longa tradição na França

Manifestantes costumam ter mais legitimidade do que parlamentares no país.

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Por Henri Astier
Atualização:

Os sindicatos de trabalhadores franceses que estão à frente da série de greves e protestos realizados contra os planos de reforma do governo estão seguindo um roteiro já conhecido no país. O governo fala sobre mudanças urgentes e apresenta uma proposta. Aqueles afetados pelo plano, então, paralisam grande parte do país. Como conseqüência, o projeto é arquivado. Essa talvez não seja a maneira de elaborar uma lei prevista na Constituição, mas a França tem uma longa tradição de legislar a partir das ruas. No ano passado, estudantes e sindicatos se opuseram a uma medida que tornava mais fácil contratar e demitir trabalhadores jovens. Apesar de ter sido aprovada com ampla maioria pela Assembléia Nacional, a lei acabou sendo abandonada. Esse recuo foi visto como uma decisão sábia: na França, os manifestantes geralmente têm mais legitimidade do que meros parlamentares. O maior de todos os embates entre o poder dos parlamentares e o poder do povo ocorreu no inverno de 1995. Há muitos paralelos entre aquele episódio e a revolta atual. Naquela época, assim como agora, os sindicatos enfrentaram um presidente reformista de centro-direita eleito apenas meio ano antes. E tanto naquela ocasião quanto agora, a batalha foi provocada por planos de mudanças no sistema de aposentadorias especiais a que alguns trabalhadores do setor público têm direito. Aquela lei, debatida e aprovada pelos parlamentares, acabou engavetada, para alívio geral. Desde então, nenhum político francês ousou tocar nos direitos especiais de aposentadoria - até a chegada do presidente Nicolas Sarkozy. Resta saber se a história vai se repetir ou se Sarkozy conseguirá enfrentar os manifestantes, que tão freqüentemente são os árbitros do poder na França. O presidente pode se apoiar em dois fatos. O primeiro é que, apesar da loga história de revoltas da França - país em que o dia nacional comemora, na verdade, uma revolta sangrenta -, a prática de legislar a partir das ruas é relativamente nova. Maio de 1968 é geralmente citado como um exemplo do poder dos estudantes. Mas o seu desfecho foi uma vitória para o governo representativo. As eleições antecipadas de junho daquele ano, vencidas com ampla maioria pelos conservadores, puseram fim aos protestos. Em um episódio mais recente, em 1992, quando caminhoneiros montaram barricadas para demonstrar seu descontentamento com mudanças na carteira de motorista, o governo socialista se recusou a ceder e enviou tanques para liberar as estradas. A alegação de Sarkozy de que ele, ao contrário dos manifestantes, tem um mandato popular não soa incongruente para a maioria da população. Isso nos leva ao segundo ponto em favor de Sarkozy: a maior parte dos eleitores considera o sistema de aposentadorias especiais um privilégio que deveria ser eliminado. Uma pesquisa de opinião publicada recentemente sugere que 58% dos franceses acham que o governo deve se manter firme. Apenas 34% querem que o governo ceda às pressões dos manifestantes. O próprio Sarkozy permanece popular, com o apoio de 55% dos entrevistados na pesquisa, mais do que o percentual obtido por ele nas eleições presidenciais de maio. Tudo isso explica por que os sindicatos não estão se apoiando apenas no poder das ruas para triunfar. Os sindicatos também estão tentando influenciar as decisões da maneira como se faz na maioria das democracias - por meio de negociações com o governo. Os socialistas da oposição, por sua vez, têm o cuidado de não se opor à reforma das aposentadorias em si - mas apenas à maneira como o governo está impondo as mudanças. Nada disso era verdade em 1995, quando os manifestantes tinham grande apoio popular. No entanto, os bons índices de aprovação em pesquisas não são garantia de que Sarkozy vá vencer esta batalha. O apoio popular pode ser volúvel, e caso o movimento de protesto se amplie nas próximas semanas, como é provável que ocorra, o desempenho de Sarkozy nas pesquisas de opinião pode cair. Além disso, a principal característica do sistema político da França continua sendo um poder parlamentar fraco. Sarkozy prometeu mudanças na Constituição para aumentar o poder da Assembléia. Mas isso não vai ocorrer até o próximo ano. Até lá, o presidente francês terá de enfrentar os sindicatos praticamente sozinho, e fazer com que as ruas deixem de ser a principal arena do debate político. BBC Brasil - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito da BBC.

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