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O jornalista Carlos Alberto Di Franco escreve quinzenalmente na seção Espaço Aberto

Opinião|Judiciário – hora de recuperar a credibilidade

A radiografia da participação de magistrados em eventos patrocinados por setores interessados em processos em curso reclama uma revisão profunda do tema

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Recente reportagem do jornal O Estado de S. Paulo pôs o dedo numa ferida ética que demanda urgente tratamento e cicatrização. Matéria assinada pelo repórter Luiz Vassallo desnudou o inacreditável esquema de patrocínio de eventos para magistrados. A reportagem, séria e consistente, reclama uma autocrítica do Poder Judiciário.

Shows exclusivos com artistas renomados, jantar em cassino, coquetel com tudo pago em hotéis de cinco estrelas, aluguel de lanchas com direito a espumante. Essas são, segundo Vassallo, algumas das atrações no roteiro de eventos no Brasil e na Europa oferecidos à magistratura e custeados por alguns dos maiores litigantes do País. Trata-se de uma promiscuidade que tisna a imagem dos magistrados.

O jornal levantou 30 grandes processos no último ano. Patrocinadores de eventos para juízes são partes nos autos ou declaradamente interessados nos julgamentos. Entre as justificativas das Cortes e das entidades que representam a magistratura estão as chamadas “atividades acadêmicas”.

Professores de Direito ouvidos pelo diário veem conflitos éticos e até possibilidade de infração disciplinar. Também afirmam que magistrados não devem aceitar “luxos” de agentes privados.

Maior encontro do gênero no País, o Congresso da Associação dos Magistrados do Brasil (AMB) levou 27 juízes, desembargadores e ministros de tribunais a Salvador (BA), em maio de 2022, como palestrantes. Painelistas ficaram em hotel cinco estrelas. Houve show para 2 mil pessoas. A operadora de turismo do Congresso ofereceu um cupom de 20% de desconto para o aluguel de lanchas.

A Confederação Nacional da Indústria (CNI), a Associação Nacional dos Registradores e o Banco do Brasil também patrocinaram o Congresso da AMB. A instituição financeira deu R$ 1,5 milhão para a realização do evento.

Do Superior Tribunal de Justiça (STJ), Marco Buzzi, Raul Araújo, Paulo de Tarso Sanseverino, Moura Ribeiro, Ricardo Cueva e João Otávio de Noronha estiveram em eventos no Brasil e no exterior. Com estes ministros o Estadão identificou ao menos 20 causas de patrocinadores dos encontros. Somadas, passam de R$ 11 bilhões em discussão nos autos dos processos. Os ministros do STJ foram procurados pela reportagem, mas não se manifestaram.

A AMB afirmou que faz “rigorosa seleção dos patrocinadores, descartando qualquer eventual tentativa de interferência na jurisdição”. “Os patrocínios são destinados, genericamente, ao evento, e não individualmente a magistrados, inexistindo conflito”, afirmou. A entidade disse que associados que foram ao evento arcaram com passagens e hotéis. A associação não respondeu, porém, se o mesmo ocorreu em relação aos palestrantes. É preciso, creio, apurar se os palestrantes receberam cachês e os respectivos valores.

A Federação Brasileira de Bancos (Febraban) patrocinou eventos com magistrados no Brasil, em Portugal e nos Estados Unidos, organizados por grupos empresariais como o Lide e o Esfera Brasil. Estiveram presentes os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) Luiz Fux, Ricardo Lewandowski, Luís Roberto Barroso, Alexandre de Moraes, Dias Toffoli e Gilmar Mendes.

A Febraban é parte num julgamento no STF sobre cobrança de PIS e Cofins que pode provocar um rombo de R$ 115 bilhões à União, no caso de vitória das instituições financeiras.

O STF afirmou que “a participação nos eventos citados terá sido em caráter acadêmico e sem nenhum gasto” para a Corte. Mas o problema não se esgota aí. A questão é a promiscuidade com instituições que têm interesses no STF, as inevitáveis dúvidas sobre a imparcialidade e a corrosão da imagem da Corte. Ainda que alguns ministros afirmem, sinceramente, que suas participações não comprometem sua imparcialidade, a percepção da sociedade não é positiva. Não basta ser. É preciso parecer.

No Supremo há ministros, como Rosa Weber, atual presidente da Corte, e Edson Fachin, que se recusam, corretamente, a comparecer a tais fóruns. Segundo a reportagem, procurados, ministros do STF, do STJ e juízes citados na matéria não se manifestaram nem responderam se arcaram com as despesas de viagem e hospedagem.

A reportagem do jornal O Estado de S. Paulo cumpre um papel importante do jornalismo de qualidade: mostrar com seriedade os desvios de conduta que podem comprometer a credibilidade do Judiciário. Estimula, assim, a necessária autocrítica e oportuna retificação de rumo.

Tenho respeito pelo Judiciário, particularmente pela Corte Suprema. Trata-se de instituição essencial para o bom funcionamento da democracia. Minhas críticas são propositivas. Desvios, quando não corrigidos, costumam acabar mal.

O ativismo judicial, o excessivo protagonismo midiático de alguns de seus ministros e o nível de repressão à liberdade de expressão adotado antes, durante e depois do período eleitoral nos colocaram mais perto das nações autocráticas que das nações livres.

Agora, a radiografia da participação de magistrados em eventos patrocinados por setores interessados em processos em andamento reclama uma revisão profunda, com a participação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), do tema, que foi objeto da reportagem.

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É JORNALISTA E CONSULTOR DE EMPRESAS DE COMUNICAÇÃO. E-MAIL: DIFRANCO@ISE.ORG.BR

Opinião por Carlos Alberto Di Franco

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