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Pesquisador em Educação e doutor em Economia pela Universidade Vanderbilt (EUA), Claudio de Moura e Castro escreve mensalmente na seção Espaço Aberto

Opinião|Ensino médio e a colisão das culturas

O Brasil tinha um sistema em que todos cursavam as mesmas disciplinas num só modelo de escola. Era o pior sistema do mundo! Enfim, mudou a lei

Atualização:

Com a disseminação da leitura e da escrita, criam-se escolas primárias para alfabetizar os jovens. Dada a necessidade de conhecimentos mais avançados, é a vez das secundárias. E, como as sociedades precisam de gente ainda mais sabida, vêm as universidades. Óbvia sequência.

Porém a cronologia foi inversa. Ao se vencerem os primeiros séculos sombrios da Idade Média, era preciso melhorar a preparação do clero e da nobreza. Para recuperar-se do obscurantismo, criam-se as primeiras universidades na Europa, a partir do século XI.

Antes de cursar a universidade (de Teologia, Filosofia e, mais adiante, Direito), preceptores introduziam os filhos da aristocracia nas Humanidades (História, Latim, Grego, Hebraico, etc.). Ciências? Nem pensar, só no século 19. Assuntos práticos? Ainda menos.

Com a expansão da matrícula, em parte pressionada por uma nova classe burguesa e pela invenção da imprensa, faltaram preceptores para os estudos que precedem a universidade. Foi inevitável criar o que, nas línguas latinas, veio a se chamar de ensino secundário (o primário aparece bem depois). Essas novas escolas eram puxadinhos da velha universidade medieval para a qual preparavam. Eram filhotes delas. Os estilos eram os mesmos: grandes saltos da abstração e jogos de palavras ao gosto escolástico.

Para o povaréu, nada de escolas. Nas profissões manuais, o mestre ensina ao aprendiz. Aprendia-se bem e sem o uso da língua escrita – que nem mestres nem seus aprendizes dominavam. As suas Corporações de Ofício se estruturam à mesma época das universidades.

Eram duas culturas. Coexistiam dois mundos, cada um do seu lado. Porém a Revolução Industrial descarrila o modelo. Trouxe um fenomenal aumento de produtividade, transformou o mundo. Mas, somando as mudanças do processo produtivo com a complexidade crescente da sociedade, borbulham conhecimentos que não podem ser ensinados numa oficina ou numa fábrica. Há a linguagem, os números, as ciências e tudo mais que não poderia transmitir um mestre de ofício.

Era preciso criar uma escola capaz de lidar também com assuntos práticos e de ensinar coisas úteis no cotidiano. Como resolver esse impasse? No fundo, fazer o inimaginável: criar uma escola com duas almas, dois DNAs. As Humanidades, rescendendo ao escolasticismo, teriam de conviver com o aprendizado de conhecimentos mundanos. Ou, quem sabe, com o ensino de profissões prenhes de manualidades?

E sempre pesou o baixo status das profissões manuais. Descobriu-se uma carta, em hieróglifos, em que um pai egípcio recomenda ao filho que as evite, pois suas mãos ficarão enrugadas como a pele de um crocodilo e federá mais do que restos de peixe.

Cada sociedade inventou o seu caminho ou copiou algum. Mas nenhuma parece estar confortável com suas próprias opções.

Veja-se uma curiosidade. A educação inicial é muito parecida, são as inevitáveis primeiras letras. A universidade forjou seus modelos rígidos já no medieval. Mas, no secundário, cada sociedade busca fórmulas para permitir conviver as abstrações escolásticas do secundário acadêmico com o aprendizado prático exigido pelo novo mundo. Obviamente, as barreiras são mais angustiantes para jovens pobres.

Na França e nas sociedades dela caudatárias, a solução mais frequente foi criar escolas para cada assunto e muitas alternativas de currículo. Além das vertentes fortemente profissionalizantes, cada aluno escolhe um sabor para a sua formação: Humanidades, Ciências, Comércio e por aí afora. Não se busca, propriamente, fundir as duas culturas, mas impedir que colidam.

Alemanha, Áustria e Suíça criam um sistema misto, o dual. Quatro dias trabalhando (sob a orientação de um Meister) e um dia de escola. Funciona muito bem. Além disso, existe mais de um secundário acadêmico. Na Alemanha, são três níveis e apenas o Gimnasium dá acesso à universidade.

Na Escandinávia, onde é mais atenuada a distância entre mão e cabeça, as escolas buscam integrar os programas, combinando o currículo acadêmico com profissionalização. Aliás, lá se inventaram os “trabalhos manuais”, fruto da crença de que usar as mãos é, em si, educativo. Portanto, não são para ensinar um ofício.

Na entrada do século 20, os Estados Unidos inventaram uma nova escola, a Comprehensive High School. Em vez de ter uma escola para cada tipo de aluno (ou carreira), como na França, todos frequentam a mesma. Nelas, com a oferta de até 200 disciplinas, cada aluno encontrará algo que lhe convenha.

O Brasil tinha um sistema bizarro, com uma única escola. Nem muitas escolas diferentes nem opções de currículo dentro dela. Todos tinham de cursar as mesmas disciplinas em um único modelo de escola. Era o pior sistema do mundo!

Finalmente, mudou a lei! A nova é meio capenga, mas muito melhor do que a anterior. Volta-se a um sistema parecido com o francês e com o que tínhamos. Criam-se várias vertentes, separando as famílias de conhecimentos. E o ciclo profissionalizante passa a ser mais uma delas. Há esperanças.

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M.A., PH.D., É PESQUISADOR EM EDUCAÇÃO

Opinião por Claudio de Moura Castro
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