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Professor de Filosofia na UFRGS, Denis Lerrer Rosenfield escreve quinzenalmente na seção Espaço Aberto

Opinião|Marx e os identitários

Vivemos a passagem do conhecimento iluminista, ocidental, para a ignorância e, posteriormente, a barbárie

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Marx era herdeiro da Aufklärung, do Iluminismo, posicionando-se como uma espécie de culminação de uma certa tradição ocidental, enraizada na ideia da igualdade. Nesse sentido, pode-se dizer que foi discípulo de Rousseau, compartilhando com ele a mesma aversão à propriedade privada, tida por causa da desigualdade social. A partir daí, desenvolveria toda uma teoria de destruição do capitalismo, que obedeceria a uma lógica interna de autodissolução, criando uma classe encarregada da redenção da humanidade, o proletariado.

Note-se que sua postura era a de um intelectual imbuído não apenas de uma missão política, mas voltado para o diagnóstico do regime capitalista de produção e de suas contradições. Sua obra propriamente teórica, nas áreas da Filosofia e da Economia, caracteriza-se pelo estudo e pela pesquisa, sempre testando suas ideias. Que o marxismo tenha se tornado dogmático graças ao controle comunista não significa que teria compartilhado deste novo posicionamento. Mesmo seu grande amigo, Engels, e um jovem alemão, Eduard Bernstein, teórico da social-democracia, chegaram a entrever que o capitalismo não se autodestruiria, mas iria se renovando.

Frise-se que Marx era um homem da Filosofia e da Economia política, um homem do conhecimento, em nada comparável a seus êmulos posteriores. Formou-se na filosofia de Hegel, ele mesmo um homem da Aufklärung, referindo-se a esse filósofo em vários momentos de sua obra. Não contente com a Filosofia, enveredou para o estudo da Economia política clássica, visando a um maior conhecimento da nova sociedade que então se desenvolvia. A primeira seção de O Capital, a do “fetichismo da mercadoria”, é de um virtuosismo ímpar na conjunção entre a lógica de Hegel e a economia política, sobretudo David Ricardo. Marx era um homem do conhecimento numa perspectiva evidentemente universal.

Tal não é hoje a perspectiva da esquerda identitária, voltada para particularidades excludentes, tipo homem x mulher, heterossexuais x homossexuais, opressores x oprimidos, negros x brancos e assim indefinidamente. Observe-se que são particularidades que procuram se afirmar em detrimento da alteridade, no apagamento do outro, como se só elas tivessem um valor absoluto. O conhecimento desaparece, visto que em seu lugar surgem a cor da pele, o gênero ou a orientação sexual, como tão bem analisou Antonio Risério.

A superfície, o aparente, toma o lugar da ciência. Logo não há mais, propriamente ditos, argumentos, confronto de ideias, mas meras opiniões superficiais. Ou seja, a esquerda identitária é avessa ao conhecimento, contentando-se com palavreados amplificados ao sabor de influencers e universidades, que abandonam o seu papel histórico de lugares do saber. Observe-se o seu poder em universidades americanas de elite, que lá fizeram imperar o politicamente correto, sendo um de seus frutos o antissemitismo. Em vez da atitude iluminista de Marx, temos o obscurantismo e a afirmação de particularidades como se fossem fontes de conhecimento. É a derrocada mesmo dos valores ocidentais, seja no conhecimento, seja na moral, seja na religião, seja na ciência. E patrocinada, paradoxalmente, por universidades – inclusive entre nós, ao se tornarem “colonizadas”.

Não deveria, portanto, surpreender que esta mesma esquerda tenha derrapado para a barbárie ao tornar o Hamas líder de uma luta “decolonial”, como se fosse a vanguarda do combate contra o Ocidente. Seriam os terroristas os porta-vozes desta nova libertação mundial, com a especificidade de que essa particularidade política não tem nada de universal, ao recusar todos os valores da civilização judaico-cristã.

Os judeus são o alvo prioritário; os próximos, já na fila de espera, serão católicos, protestantes, evangélicos em suas distintas correntes. É flagrante a contradição não somente no que diz respeito às formulações marxistas, mas também aos princípios da política identitária. Pregam eles a dominação global do islamismo, com a eliminação de outras religiões, a subjugação das mulheres, a mutilação sexual destas em algumas regiões e a educação das crianças para a cultura do ódio e da morte para todo aquele que deles discordarem.

Compreende-se melhor o silêncio, para lá de constrangedor, desta esquerda no que tange aos ataques sistemáticos da Turquia contra as populações curdas, com bombardeio de vilarejos no Iraque, além de, no passado, ter usado tanques com o mesmo objetivo nesse país e na Síria. Só nos dois últimos meses foram três bombardeios. Algum protesto? A Ucrânia foi violentamente invadida pela Rússia amparada em sua ideologia nacionalista imperial, tendo uma parte de seu território subtraída de sua soberania. Algum protesto? Nos últimos dias, a ditadura esquerdista venezuelana explicita seus planos de invadir e anexar uma parte da Guiana, num flagrante desrespeito à ordem internacional. Algum protesto?

É a passagem do conhecimento iluminista, ocidental, para a ignorância e, posteriormente, a barbárie.

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PROFESSOR DE FILOSOFIA NA UFRGS. E-MAIL: DENISROSENFIELD@TERRA.COM.BR

Opinião por Denis Lerrer Rosenfield

Professor de Filosofia na UFRGS, Denis Lerrer Rosenfield escreve quinzenalmente na seção Espaço Aberto

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