Há poucos dias, a imprensa divulgou um levantamento, baseado em pesquisa do IBGE, sobre o impacto da pandemia na educação (Estado, 8/2, A12). Um dos dados mais chocantes foi a constatação de que o número de crianças de 6 a 7 anos que não sabem ler nem escrever cresceu 66% nos dois anos da pandemia de covid-19. Como era de esperar, esse déficit de alfabetização incidiu mais pesadamente nas camadas pobres da população, que agora precisam receber uma ajuda pedagógica extraordinária para não levarem esse prejuízo para o resto de sua vida.
Não por mera coincidência, neste ano, a Campanha da Fraternidade, promovida todos os anos no período da quaresma pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), tem como tema “fraternidade e educação”. Não é a primeira vez que a educação é abordada nas seis décadas da existência da Campanha da Fraternidade – ela já foi tema, também, em 1982 e 1998. Dispensável é argumentar sobre a relevância da educação para a vida das pessoas e para a comunidade humana. Nem é preciso discorrer sobre as carências históricas da educação no Brasil, não apenas no período da pandemia. Cenas de racismo e de ódio, como as mostradas com frequência pelas mídias, também questionam profundamente o modelo de educação formal e informal proporcionada às pessoas.
A proposta da Campanha da Fraternidade deste ano recebeu uma motivação especial, vinda do papa Francisco, que há tempos clama por um “pacto educativo global”, convidando pessoas, instituições, organizações religiosas e governos a repensarem os rumos da educação, imprimindo um perfil mais humanista e solidário, que leve à transformação de estruturas sociais viciadas e permeie a cultura com valores humanos. Francisco questiona os modelos educativos que não têm a pessoa humana como foco principal, voltados sobretudo para alimentar o sistema de produção e consumo.
A centralidade da pessoa, a fraternidade e a busca da verdade são princípios essenciais que devem nortear a educação. O objetivo básico da educação, em todos os níveis, precisa ser a preparação de pessoas boas, com princípios honestos e sólidos, que saibam conviver no respeito, na justiça, na fraternidade e na solidariedade. O processo educativo precisaria evidenciar mais esta meta simples e básica: preparar pessoas boas e cidadãos bons, capazes de humanizar a convivência e as atividades humanas.
A Campanha da Fraternidade sobre a educação é um chamado à reflexão sobre a qualidade da educação oferecida às pessoas, desde a mais tenra idade, e sobre os fundamentos e as qualidades do ato educativo, que não pode ser reduzido a ações isoladas, mas precisa envolver processos nos quais confluem os esforços de educadores e educandos, família, escola e instituições do Estado e da sociedade. A realidade da educação no Brasil requer uma urgente e profunda avaliação e revisão, para estar realmente a serviço do desenvolvimento integral das pessoas na sua vida pessoal e social.
Um risco a ser evitado é a redução da educação à mera transmissão de conhecimentos, cuja importância não se nega, mas que não esgota o processo educativo. A educação humanizada também vai muito além de um mero treinamento e condicionamento de agentes do sistema de produção e consumo. A boa educação está comprometida com a convivência humana e o próprio ambiente da vida, proporcionando ajuda ao desenvolvimento integral das pessoas para o exercício da sua liberdade e das suas capacidades para interagir de maneira positiva com os demais seres humanos e o mundo. A educação humanizada deve contribuir para a formação de pessoas abertas, integradas e interligadas, capazes de cuidar da natureza e do planeta, nossa “casa comum”, nas palavras do papa Francisco.
“Fala com sabedoria, ensina com amor” – este é o lema da campanha, repercutindo uma passagem do livro dos Provérbios, da Bíblia (cf Pr 31,26). Na educação humanizada, ganha especial destaque a pedagogia da escuta atenta e integral dos educandos, para os capacitar para o discernimento e a fazerem as escolhas a que a vida os desafia. Na educação humanizada deve ser evitada a tentação de orientar os ouvidos dos educandos somente para os sons previamente já selecionados. Não deve ser uma imposição extrínseca de padrões, sem a participação dos educandos. Assim, a educação é um processo, voltado a preparar as pessoas para o exercício da própria liberdade e responsabilidade.
A pandemia de covid-19 nos pegou de surpresa e esvaziou muitos delírios de onipotência da humanidade, obrigando-nos a colocar os pés novamente no duro chão da realidade e a nos conhecermos melhor. Desafiou-nos a repensar estilos de vida, as relações sociais fragmentadas e a organização individualista da sociedade. Sozinhos não nos salvamos! A pandemia ofereceu-nos uma chance para a busca e a descoberta de meios e processos mais adequados, criativos e eficazes para reorientar os rumos da humanidade. A educação tem a grande missão de favorecer um mundo mais fraterno e humano, que colherá justiça e paz no presente e no futuro.
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CARDEAL-ARCEBISPO DE SÃO PAULO
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