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Opinião|A Lei 14.836 e o empate em julgamentos colegiados de matérias penal e processual penal

Texto configura importante avanço na busca por um processo penal verdadeiramente democrático, inspirado por ideais de isonomia e igualdade

Foi sancionada pelo presidente da República no dia 9 de abril de 2024 a Lei n.º 14.836/2024, que acrescenta e altera artigos do Código de Processo Penal para disciplinar de forma definitiva o empate em julgamentos colegiados de matérias penal e processual penal.

Em outras palavras, o que a lei em questão regulamenta é uma situação de relativa frequência nos diversos tribunais do País: qual a consequência jurídica quando a divergência entre os julgadores (sejam eles ministros, desembargadores ou mesmo juízes) ocasiona um empate numa ação penal?

Via de regra, a igualdade não deveria ocorrer em julgamentos do Poder Judiciário pois os órgãos colegiados possuem um número ímpar de integrantes, geralmente três, cinco ou onze, como no caso do Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF), de maneira que uma determinada decisão haveria sempre de prevalecer por maioria de votos (dois a um, três a dois, quatro a um, etc.).

Na prática, contudo, não é incomum que algum julgador se dê por suspeito ou impedido, não esteja presente numa sessão por algum motivo justificado (viagem profissional, licença-saúde ou até mesmo férias, dentre inúmeros exemplos) ou, ainda, haja vacância do cargo por eventual cadência na nomeação do sucessor ou providências burocráticas para sua posse (situações que foram identificadas na última indicação do presidente da República para o cargo de ministro do Supremo Tribunal Federal ocorrida no ano de 2023).

É de conhecimento que qualquer legislação processual penal moderna preconiza que a dúvida deve ser resolvida em favor do réu, na esteira do que prevê o brocardo latino do in dubio pro reo, compreendido como uma “fórmula liberal dos regimes democráticos” segundo leciona o ex-ministro do STF Celso de Mello.

Tal adágio nada mais é do que uma das expressões do sistema processual de natureza acusatória, segundo o qual o réu no processo penal é sujeito de direitos (e não mero objeto da investigação), competindo ao Estado-acusador o ônus de comprovar a responsabilidade penal de qualquer cidadão.

No Brasil, a Constituição federal de 1988, mais precisamente em seu artigo 129, atribuiu ao Ministério Público a tarefa de acusar e, consequentemente, de provar a existência do crime e vinculá-lo a um determinado autor que, também por imposição constitucional, possui status jurídico de inocente (conforme dispõe o inciso LVII do artigo 5.º da Constituição federal de 1988, do qual se lê: “Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”).

Essa inspiração democrática leciona que é melhor absolver um culpado do que punir um inocente, de tal maneira que a existência de dúvida é suficiente para a absolvição conforme se vislumbra do inciso VII do artigo 386 do atual Código de Processo Penal (segundo o qual constitui fundamento para a sentença absolutória o reconhecimento pelo juiz de “não existir prova suficiente para a condenação”).

Nesse contexto, parece lógico que eventual empate num julgamento colegiado em ações penais permite a conclusão pela existência dessa dúvida razoável capaz de conduzir à absolvição do réu – e é justamente isso que veio dispor expressamente a lei aprovada pelo Congresso Nacional e recentemente sancionada pelo presidente da República.

Embora tal raciocínio seja o mais condizente com a ordem constitucional e com as diretrizes modernas da ciência processual, a análise histórica da jurisprudência do STF nessas situações revela uma certa hesitação: enquanto em algumas ocasiões entendeu-se que o empate favorecia o acusado (como na Ação Penal (AP) 470 – o célebre caso do mensalão – e na AP 565), em outras o Tribunal Supremo decidiu aguardar o retorno do ministro ausente para desempatar o julgamento (como, por exemplo, na AP 480, na AP 433 e, mais recentemente, no ano de 2021, na AP 969, quando o julgamento foi suspenso para aguardar a posse do novo ministro).

É verdade que os Tribunais Superiores do País (Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça) possuem artigos em seus Regimentos Internos que privilegiam a decisão mais favorável ao acusado para o caso de empate, mas ambos os dispositivos (artigo 146, parágrafo único do RISTF, e artigo 181, parágrafo 4.º do RISTJ) só disciplinam o julgamento de habeas corpus e de recursos de habeas corpus.

Ou seja, a Lei n.º 14.836/2024 é muito bem-vinda e fulmina a insegurança jurídica que até aqui existe em relação ao tema, configurando um importante avanço na incessante busca de um processo penal verdadeiramente democrático, inspirado por ideais de isonomia e igualdade.

Vê-se, pois, que o Congresso Nacional, por meio dos seus integrantes legitimamente eleitos, uma vez mais atuou fazendo justamente o que dele se espera, a saber, legislando em prol da salvaguarda de direitos individuais e privilegiando a dignidade humana, providência que reforça o sistema processual acusatório e, de resto, a democracia brasileira.

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DIRETOR DE ASSUNTOS TÉCNICOS E JURÍDICOS DO SENADO FEDERAL

Opinião por José Bernardo de Assis Junior

Diretor de Assuntos Técnicos e Jurídicos do Senado Federal