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Opinião|É preciso entender a obesidade para conseguir tratá-la

Os benefícios que a ciência comprova em relação à semaglutida têm ajudado a entender a complexidade da obesidade e as comorbidades causadas por ela

Um dos primeiros registros médicos para contornar a obesidade é por volta dos anos 960, no século 10, quando dom Sancho I, rei de Leão, teve a boca costurada para parar de comer. Na época, por meio de um canudo rudimentar, o monarca recebia poucos alimentos e uma substância que continha ópio, que o mantinha dopado e o fez emagrecer. Diz a lenda que dom Sancho emagreceu, mas não sabemos se ele manteve o peso, já que foi envenenado e morreu, mas, diante das informações que temos a respeito dessa doença atualmente, é provável que o rei tivesse recuperado o peso.

Isso porque a obesidade não é uma questão comportamental, de falha de caráter, disciplina, preguiça ou simples mudança de estilo de vida que será solucionada por um tratamento agressivo e pontual. Trata-se de uma doença crônica, neuroquímica, multifatorial e recidivante que pode provocar o aparecimento do diabetes tipo 2, doenças cardiovasculares (hipertensão, acidente vascular cerebral, insuficiência cardíaca congestiva e embolia pulmonar), apneia do sono, problemas no fígado e de circulação e alguns tipos de cânceres.

Sendo assim, volto à História não só para lembrar que a obesidade acomete a humanidade há séculos – na verdade, temos relatos de pessoas com obesidade no período paleolítico, há mais de 25 mil anos –, mas para reforçar que demorou para termos uma melhor compreensão dessa doença e consequentemente houve um atraso na descoberta de tratamentos mais efetivos.

Atualmente vivemos um caótico descontrole de peso. Superamos a marca de 1 bilhão de pessoas com obesidade no mundo, segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS). Enfrentamos uma epidemia que não distingue faixa etária e virou um sério problema de saúde pública. Enquanto os casos entre adultos mais do que duplicaram desde 1990, a quantidade de crianças e adolescentes entre 5 e 19 anos de idade quadruplicou.

Historicamente, encontrar uma terapia medicamentosa para tratar a obesidade que fosse ao mesmo tempo segura e eficaz sempre foi um desafio para a comunidade médica. As anfetaminas e os inibidores de apetite dos anos 1990, por exemplo, não traziam resultados significativos ou duradouros de peso e ainda estavam associados a efeitos colaterais cardíacos e psiquiátricos intoleráveis.

Recentemente uma nova classe de medicamentos tem chamado a atenção por seus resultados promissores. É o caso da semaglutida, que, segundo o periódico The Lancet, tem causado uma reviravolta no tratamento da obesidade. Análogo do receptor de GLP-1 (GLP-1 RA), a semaglutida, originalmente aprovada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para o tratamento do diabetes mellittus tipo 2, e hoje já aprovada para o tratamento da obesidade, atua sobre os receptores de GLP-1 presentes em todo o organismo, e principalmente no cérebro. Os GLP-1 RAs reduzem o consumo de energia ao aumentar a sinalização de saciedade e reduzir a fome diretamente no sistema nervoso central.

Estudos apontam que a semaglutida em posologia ajustada para o tratamento da obesidade leva à perda média de 17% ou mais de peso em adultos e adolescentes com sobrepeso e obesidade, atingindo assim um novo padrão de emagrecimento até então inalcançável sem a cirurgia bariátrica.

Além da ação dessa molécula no emagrecimento, pesquisas apontam outros benefícios da semaglutida, como alívio nos sintomas da insuficiência cardíaca, redução do risco para o infarto e do acidente vascular cerebral (AVC). A mesma substância ainda contribui em desfechos positivos para outros problemas de saúde, como insuficiência renal, Alzheimer, Parkinson e esteato-hepatite associada à disfunção metabólica (MASH), segundo pesquisas em andamento.

Todos esses benefícios que a ciência comprova em relação à semaglutida têm nos ajudado a entender a complexidade da obesidade e as comorbidades causadas por ela, reforçando algo que ainda não está claro para grande parte da população. A obesidade vem associada a uma série de doenças e requer, portanto, um acompanhamento multidisciplinar com a presença de médicos, nutricionistas, psicólogos, psiquiatras e profissionais especializados em atividades físicas.

Temos um novo arsenal de medicamentos mais eficazes e seguros à disposição. Mesmo nesse cenário mais promissor, precisamos propagar mais informações sobre a doença para conscientizar as pessoas.

Pesquisas revelam que os pacientes portadores de obesidade demoram em torno de seis anos para buscar ajuda profissional. De fato, muitos pacientes erroneamente entendem que podem tratar a obesidade sozinhos. Há ainda aqueles que recorrem a tratamentos pontuais sem avaliação ou recomendação médica, e que ficam suscetíveis a uma série de riscos à saúde e à recuperação de todo o peso perdido.

É preciso entender que a obesidade é uma doença que exigirá tratamento por toda a vida, bem como acompanhamento de profissionais especializados. É formidável ver o avanço da medicina, mas é preciso ter em mente que todo medicamento deve ser prescrito por um médico que conheça a doença e atue de forma ética e responsável. É com informação e humanismo que poderemos enfrentar a obesidade beneficiando as pessoas.

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ESPECIALISTA EM ENDOCRINOLOGIA E METABOLOGIA, É PESQUISADOR PRINCIPAL DO CENTRO DE PESQUISA EM OBESIDADE E COMORBIDADES (OCRC), DA UNICAMP

Opinião por Bruno Geloneze

Especialista em Endocrinologia e Metabologia, é pesquisador principal do Centro de Pesquisa em Obesidade e Comorbidades (OCRC), da Unicamp