Foto do(a) page

Conheça o Espaço Aberto na editoria de Opinião do Estadão. Veja análises e artigos de opinião em colunas escritas por convidados e publicadas pelo Estadão.

Opinião|As infâncias indígenas pedem socorro

Neste Dia dos Povos Indígenas, convido os gestores de todo o País a elegerem a criança indígena prioridade absoluta e agirem com o devido senso de urgência para protegê-la

As consequências trágicas da exploração de madeira e da mineração – ambas atividades ilegais – nas terras indígenas Yanomamis trouxeram os holofotes do Brasil e do mundo para a saúde das crianças indígenas. Alta taxa de desnutrição, prevalência elevada de casos de malária, entre outras doenças, e atrasos neurológicos causados pela exposição continuada de crianças ao mercúrio usado nessas atividades evidenciam a crise aguda de saúde que vitimiza os Yanomamis já ao nascer. O estudo Desigualdades em Saúde de Crianças Indígenas, conduzido pelo Núcleo Ciência Pela Infância (NCPI), mostra um outro dado alarmante: não são apenas em territórios com emergências humanitárias que o bem-estar e a vida das crianças indígenas estão em risco. As primeiras infâncias das 307 etnias presentes no Brasil vivem sob a ameaça de padecer de doenças evitáveis e terem seu desenvolvimento comprometido com a desnutrição infantil.

No grupo de crianças de até 4 anos, morrem mais do que o dobro de crianças indígenas do que acontece com as demais crianças da mesma faixa etária no País. Enquanto a taxa de mortes de crianças não indígenas de até 4 anos de idade no Brasil está em 14,2 para cada mil nascidos vivos, entre os indígenas esse número é de 34,7 para cada mil nascidos vivos – taxa bem superior à meta dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, que é de 25 para cada mil nascidos vivos.

Há desigualdade também na taxa de mortalidade neonatal, que considera os bebês que morrem com até 27 dias de vida. No Brasil, a taxa é de 8 para cada mil nascidos vivos entre todas as crianças; enquanto para o grupo de bebês indígenas essa taxa é 55% superior, ficando em 12,4 para cada mil nascidos vivos.

Entre as enfermidades que mais vitimam bebês e crianças indígenas estão as doenças infecciosas e parasitárias, ou doenças endócrinas, nutricionais e metabólicas e aquelas que afetam o aparelho respiratório. A proporção de crianças indígenas de até 4 anos de idade que morrem dessas doenças é de 34,7%, enquanto entre não indígenas é de apenas 14%.

Mortes causadas por esse conjunto de doenças são definidas como evitáveis porque são possíveis de serem prevenidas, total ou parcialmente, por ações efetivas dos serviços de saúde disponíveis hoje. O fato de acontecerem 142% a mais de mortes entre crianças indígenas decorrentes dessas causas do que entre as não indígenas evidencia, entre outros aspectos, a desigualdade no acesso aos serviços de atenção à saúde para essa população.

Há dois tipos de entraves relacionados ao acesso que dificultam os cuidados com a saúde indígena. O primeiro diz respeito à infraestrutura física e às dificuldades de alcance. Muitas populações indígenas ficam em regiões de difícil acesso, tanto para as equipes de saúde chegarem lá quanto para a população ir até elas. Neste caso, é necessário ter veículos adequados, como carros preparados para rodar naquelas vias ou barcos, mas isso nem sempre é possível – e muito menos na frequência adequada. Dados do estudo, coletados no período entre 2018 e 2022, mostram que 90% das gestantes indígenas receberam um atendimento médico, mas na Região Norte, por exemplo, que concentra 45% da população indígena de todo o País, 77,3% das gestantes indígenas não fizeram pré-natal, que consiste em cinco ou seis consultas médicas. A falta de continuidade adequada tanto nos cuidados com a gravidez quanto com os marcos de desenvolvimento das crianças é também consequência da dificuldade de acesso.

Outro tipo de acesso que representa um entrave tão importante quanto o físico são as diferenças culturais. O entendimento sobre corpos saudáveis e as práticas para cultivá-lo é distinto entre as diferentes etnias e ainda mais diferente dos hábitos ocidentais. É comum ouvir relatos sobre tensões entre as ações dos profissionais de saúde e as práticas tradicionais dos pajés e das parteiras. Há gestantes indígenas que se recusam a seguir o que é prescrito pelo médico ou a realizar exames, por não entenderem a razão daqueles procedimentos.

Compreender como cada etnia percebe o período da gestação e seus modos de tratá-la contribui para que equipes de saúde possam construir juntamente com os povos indígenas formas de mostrar a importância da prevenção feita pelo acompanhamento pré-natal e outras práticas de saúde ocidental e, ao mesmo tempo, de ofertá-lo com base na adaptação e no respeito a cada cultura. A importância de integrar o conhecimento local de cada povo está prescrita como uma das diretrizes centrais da Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas (Pnaspi). Ocorre que nem sempre a formação dada ao profissional de saúde contempla esses aspectos. Além disso, o pouco tempo que cada um deles passa nas aldeias e a alta rotatividade dificultam a aquisição de conhecimentos necessários sobre cada etnia para, a partir de então, estabelecer o vínculo de confiança e a comunicação com a população indígena que viabilize o atendimento efetivo em saúde.

Os dois entraves relacionados à infraestrutura e à adequação cultural das práticas de saúde estão dentro da dimensão da área da saúde, sob responsabilidade do Sistema Único de Saúde (SUS), que é responsável pela Pnaspi. Já a outra grande ameaça à saúde e à vidas das crianças indígenas precisa da atuação intersetorial para ser combatida. Como bem evidencia a atual crise de saúde dos Yanomamis, agressões ao meio ambiente impactam a saúde de todos os indígenas, seus hábitos de vida e os expõem a todo tipo de risco: da insegurança alimentar – por inviabilizar a pesca, a caça e o plantio – à morte por novas doenças para as quais esses povos não têm defesa natural.

O desmatamento, por exemplo, está relacionado à expansão de doenças infecciosas, como a malária. Um aumento de 10% no desmatamento é capaz de ampliar em 3,3% a incidência de malária na Amazônia. A pesquisa mais recente sobre a crise yanomami, realizada pela Fiocruz, revelou que a contaminação por mercúrio em indígenas yanomamis tem provocado graves deficiências cognitivas nas crianças.

Outra consequência da degradação ambiental é o fato de os povos indígenas serem forçados a abandonar seus territórios por não conseguirem mais encontrar alimentos naquela região. Há, ainda, situações em que eles são expulsos de suas terras por invasores. Tudo isso impõe risco de insegurança alimentar e consequente desnutrição infantil e impacta a saúde de toda a população. Entre os Yanomamis da região amazônica verificou-se que 56% dos adultos não têm nenhum tipo de renda regular, resultando em risco de fome. Além disso, a prevalência de baixa estatura entre as mães dessas comunidades foi de 73%, o que evidencia um ciclo intergeracional de desnutrição, já que as recorrentes disfunções entéricas e diarreicas, causadas por ambientes contaminados, prejudicam a absorção de nutrientes dos alimentos.

Sem a pretensão de esgotar um problema tão complexo e multifatorial como são as iniquidades na atenção à saúde indígena, espero neste espaço conseguir chamar a atenção para o fato de que as crianças são as que mais sofrem com os problemas aqui enumerados. Embora seja necessário atuar em múltiplas frentes para que consigamos proteger as crianças indígenas da forma como elas têm direito, o ponto de partida é bastante claro.

No âmbito do SUS, é essencial investir em infraestrutura e aumento do número de profissionais para garantir o acesso dos povos indígenas aos serviços de saúde que estão disponíveis a toda a população brasileira – como pré-natal, vacinação e acompanhamento com periodicidade adequada para a identificação precoce de problemas de desenvolvimento e doenças em geral.

Tão importante quanto isso é fortalecer e ampliar os programas de formação a todos os profissionais que forem designados a trabalhar com as populações indígenas. Entender a importância de manter os profissionais por mais tempo em cada região como uma estratégia de promoção de saúde e atuar para que isso aconteça deve, juntamente com a formação, ajudar a ultrapassar barreiras culturais na prestação de serviços de saúde.

Por fim, é fundamental reforçar as ações que protejam o meio ambiente e o entorno dos povos indígenas. Independentemente da etnia, seus modos de vida estão intrinsecamente ligados à natureza que os cerca. Como a drástica experiência dos Yanomamis com o garimpo ilegal e os dados do estudo apontam, a degradação ambiental impacta diretamente a saúde das populações indígenas – em especial a das crianças, que são o elo mais frágil dessa cadeia. O País e o sistema de saúde precisam ser capazes de enxergar as crianças indígenas para que elas recebam o atendimento de que necessitam. Não há outra forma de fazer isso sem ser por meio da máquina pública. Na efeméride criada para nos lembrar da importância dos povos originários, convido os gestores de todo o País a elegerem a criança indígena prioridade absoluta e agirem com o devido senso de urgência para protegê-la.

*

PROFESSORA ASSOCIADA DO DEPARTAMENTO DE SAÚDE PÚBLICA DA FACULDADE DE MEDICINA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ (UFC), CIENTISTA CHEFE DA FUNCAP (ÁREA TEMÁTICA DE INFÂNCIA E JUVENTUDE), É INTEGRANTE DO COMITÊ CIENTÍFICO DO NÚCLEO CIÊNCIA PELA INFÂNCIA (NCPI)

Opinião por Márcia Machado

Professora associada do Departamento de Saúde Pública da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará (UFC), cientista chefe da Funcap (área temática de infância e juventude), é integrante do Comitê Científico do Núcleo Ciência Pela Infância (NCPI)