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Opinião|Ultraprocessismo, não!

Condenar alimentos que são nutritivos e seguros representa a negação de toda a ciência e tecnologia de alimentos que existe hoje à disposição da sociedade

Um movimento que vem crescendo nos últimos anos, fomentado por pessoas e instituições, baseia-se na crença de que alimentos industrializados de um conjunto bastante heterogêneo de categorias seriam “ultraprocessados” e, por isso, não saudáveis. Se esse fosse um movimento restrito à legítima expressão da ideologia de seus integrantes, não haveria objeção. O problema é usar um conceito controverso e generalista, que não é capaz de orientar o consumo de forma adequada, na tentativa de cancelar alimentos por meio de políticas de taxação, que têm pouca eficácia para mudar hábitos alimentares. A esse movimento eu atribuo o nome de ultraprocessismo.

Uma pesquisa sobre a compreensão dos consumidores brasileiros, conduzida por especialistas da Faculdade de Zootecnia e Engenharia de Alimentos da USP em 2022, evidenciou que mais de 80% das pessoas declararam conhecer o termo “ultraprocessados”, mas o consideram confuso e a linguagem pouco acessível. Não havia pleno conhecimento nem mesmo entre profissionais de saúde e alimentação.

Diferentemente do que sugere o conceito dos chamados ultraprocessados, do ponto de vista da ciência e da tecnologia de alimentos o que determina a qualidade dos produtos é a composição nutricional, e não a quantidade de ingredientes ou de etapas de processamento. Para os ultraprocessistas, a baixa qualidade nutricional também teria relação com a elevada presença de sódio, açúcares adicionados e gorduras saturadas. Entretanto, ignoram que a maior parte do sal é consumida dentro dos lares, no ato de cozinhar, e não nos alimentos industrializados. Da mesma forma, a maior parte das calorias do que é consumido diariamente não vem diretamente de alimentos industrializados.

A Pesquisa de Orçamentos Familiares do IBGE revelou que, no Brasil, entre 2002 e 2018, os alimentos “ultraprocessados” tiveram participação relativa de 12,6% no total de calorias ingeridas pela população, enquanto 79,1% vieram dos ingredientes culinários processados (25,8%) usados para cozinhar alimentos in natura ou minimamente processados (53,3%). A ressalva é que a tecnologia, hoje, consegue reduzir o teor de sódio, açúcar e gordura dos alimentos industrializados, ao passo que isso não ocorre, necessariamente, na elaboração de pavês e pudins caseiros, nos churrascos de final de semana, salgadinhos em aniversários, pastéis de feiras. Não sem educação nutricional.

Em relação aos ingredientes utilizados no processamento de alimentos, é preciso esclarecer que a indústria não tem livre arbítrio para o uso de conservantes e outros aditivos. Todos são analisados quanto à segurança, antes de serem permitidos pelas autoridades governamentais. Os conservantes, por exemplo, são fundamentais na garantia da segurança e da qualidade dos alimentos processados. Sua maior durabilidade, o que não era possível no passado, contribui para a redução de desperdícios e para a promoção da segurança alimentar.

É impossível relacionar todas as objeções quanto ao ultraprocessismo, mas os dados até aqui expostos evidenciam a necessidade de esclarecimentos para a sociedade e, principalmente, para os formuladores de políticas públicas. Condenar alimentos que são nutritivos e seguros representa a negação de toda a ciência e tecnologia de alimentos que existe hoje à disposição da sociedade. É ignorar a complexidade da alimentação humana.

É difícil o diálogo com os ultraprocessistas, pois costumam rechaçar dados científicos e estatísticas que mostrem suas contradições. É comum reagirem contra aqueles que os expõem, geralmente com a acusação de que são “patrocinados” pela indústria, sem a menor consideração sobre sua ética profissional. Aos pesquisadores da ciência e tecnologia de alimentos, cabe o enorme desafio de alinhar informação científica à prática alimentar cotidiana. Aos que trabalham há décadas com o mesmo objetivo, é preciso combater a desinformação e dizer não ao ultraprocessismo nas políticas públicas.

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PESQUISADOR EM CIÊNCIA, TECNOLOGIA E INOVAÇÃO DE ALIMENTOS, ENGENHEIRO DE ALIMENTOS (UNICAMP), BACHAREL EM ECONOMIA, DOUTOR E MESTRE EM ADMINISTRAÇÃO (USP)

Opinião por Raul Amaral

Pesquisador em ciência, tecnologia e inovação de alimentos, engenheiro de alimentos (Unicamp), bacharel em Economia, doutor e mestre em Administração (USP)