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Opinião|Competência da Justiça Militar e coração civil

A sociedade está militarizada, orientada pela noção de amigo ou inimigo própria do espírito de caserna. É preciso iniciar a desmilitarização do aparato estatal

O Supremo Tribunal Federal (STF) deve julgar em breve duas Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADI 5.032 e ADI 5.901) que discutem a ampliação da competência da Justiça Militar, promovida, respectivamente, pelo artigo 15, § 7.º, da Lei Complementar n.º 97/1999 (com redações alteradas por leis de 2004 e 2010) e pela Lei n.º 13.491/2017.

No primeiro caso, o propósito foi estender o conceito de “atividade militar” para aquelas atividades ocorridas no âmbito da Garantia da Lei e da Ordem (GLO). Já a segunda lei (1) ampliou o conceito de “crime militar”, considerando como tal qualquer crime previsto na legislação penal, desde que praticado por militares da ativa nas situações previstas no artigo 9.º, II, do Código Penal Militar, o que inclui, por exemplo, tortura e crimes contra o Estado Democrático de Direito; e (2) possibilitou que a Justiça Militar da União julgue crimes dolosos contra a vida praticados por militares das Forças Armadas contra civis, matéria privativa do Tribunal do Júri (artigo 5.º, XXXVIII, “d”).

Há vasta jurisprudência internacional e regional no sentido de que, nos países que a mantêm em tempo de paz, a jurisdição da Justiça Militar deve ser compreendida com muita parcimônia, estando limitada aos assuntos propriamente militares, ou seja, aqueles que dizem respeito às coisas da caserna e às suas disciplinas, hierarquia ou patrimônio.

Como decorrência desse princípio da especialidade – que é uma importante dimensão do controle democrático sobre as forças militares –, uma lei não pode tornar todos os crimes militares apenas por causa da condição do agente. No caso Kholodova vs. Federação Russa, o Comitê de Direitos Humanos das Nações Unidas (ONU) estabeleceu que o julgamento de militares perante um tribunal militar pelo assassinato de uma jornalista, mesmo havendo lei específica, era inadequado, porque o crime, “evidentemente e incontestavelmente”, não fazia parte de seus “deveres funcionais”.

Há outros desdobramentos dessa compreensão, como o direito a um julgamento justo perante um tribunal independente e imparcial e a obrigação processual correlata de investigar os acontecimentos que resultaram em violações de direitos. Para que um tribunal seja imparcial, ele deve ser e parecer isento.

O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, no caso Al-Skeine e outros vs. Reino Unido, afirmou que a obrigação processual de conduzir uma investigação independente exige que não haja uma ligação hierárquica ou institucional entre os responsáveis pelos inquéritos e os supostos autores.

A Corte Interamericana de Direitos Humanos, no caso Favela Nova Brasília vs. Brasil, também observou que a independência e a imparcialidade dos órgãos responsáveis pelas investigações exigem que eles não tenham qualquer relação institucional ou hierárquica com as partes.

A Comissão Interamericana de Direitos Humanos, no caso Herzog vs. Brasil, chamou a atenção para o fato de que, no Brasil, o sistema judiciário militar é composto majoritariamente por membros militares em serviço ativo, tornando ilusório o requisito da imparcialidade, uma vez que os juízes julgam seus próprios companheiros de armas. O Superior Tribunal Militar (STM), por exemplo, conta com dez ministros militares, “todos da ativa e do posto mais elevado da carreira”. Já os Conselhos da Justiça Militar são compostos por quatro membros militares da ativa e um juiz civil.

Conforme observam os Princípios de Decaux, que tratam do âmbito da jurisdição militar em tempos de paz e foram aprovados pelo Comitê de Direitos Humanos das Nações Unidas, “em todas as circunstâncias, a jurisdição dos tribunais militares deve ser deixada de lado em favor da jurisdição dos tribunais comuns para levar a cabo inquéritos sobre graves violações de direitos humanos”. O Brasil, por exemplo, ratificou a Convenção Interamericana sobre o Desaparecimento Forçado de Pessoas, que proíbe expressamente a competência da Justiça Militar em casos de desaparecimento forçado.

As atividades ocorridas no âmbito da GLO são de segurança pública e, portanto, de natureza eminentemente civil. A instituição do júri é um direito fundamental resguardado por cláusula pétrea.

A sociedade está militarizada, orientada pela noção de amigo/inimigo própria do espírito de caserna. Para superar essa situação, é preciso iniciar a desmilitarização do aparato estatal. O Brasil não vive a iminência de uma guerra, e a convivência pacífica entre as pessoas pressupõe desarmamento de corações e mentes. Por isso, parafraseando Milton Nascimento e Fernando Brant, aguarda-se que o Supremo Tribunal Federal leve a sério o coração civil.

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RENATO STANZIOLA VIEIRA, presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim);

DEBORAH DUPRAT, coordenadora do Departamento de Amicus Curiae do IBCCrim;

JOSÉ CARLOS DIAS, membro fundador e presidente da Comissão Arns;

OSCAR VILHENA VIEIRA, professor da FGV e membro fundador da Comissão Arns;

GABRIEL SAMPAIO, diretor de Litigância e Incidência do Conectas Direitos Humanos;

DANIEL SARMENTO, advogado e professor titular de Direito Constitucional da Uerj; e

GUILHERME ZILIANI CARNELÓS, presidente do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD)

Opinião por Renato Stanziola Vieira
Deborah Duprat
José Carlos Dias
Oscar Vilhena Vieira
Gabriel Sampaio
Daniel Sarmento
Guilherme Ziliani Carnelós