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Opinião|Curto-circuito na governança do setor elétrico

Novas fontes de geração de energia trouxeram consigo atores com visões de mundo, modos de atuação e processos de legitimação diferentes e organizados em redes

Por Rutelly Marques da Silva

O parque de geração de energia elétrica sofreu uma transformação significativa nos últimos anos. Em 2005, hidrelétricas representavam 76% da capacidade instalada no País, seguidas pelas termoelétricas movidas a combustíveis fósseis, com 17%. Juntas, elas somavam 93% da carga total, segundo a Empresa de Pesquisa Energética (EPE).

Em 2023, a participação dessas duas fontes permaneceu expressiva, mas foi reduzida a 73%: 58% de hidrelétricas e 15% de termoelétricas. Isso se deve à expansão de outras formas de geração que mal existiam em 2005, como eólica e solar, que hoje alcançam 13% e 4%, respectivamente. Estamos, portanto, trilhando o caminho desejado de diversificação da matriz elétrica e, o melhor, a partir de fontes com impactos ambientais e sociais potencialmente menores.

Essa desejável transformação disparou alertas sobre a necessidade de adaptar o planejamento e a operação do sistema elétrico, especialmente para lidar com a intermitência dessas fontes e evitar falhas, como apagões. Os eventos climáticos extremos, a transição energética e a descentralização da geração de energia elétrica, concretizada na disseminação da microgeração e minigeração distribuídas – os famosos painéis fotovoltaicos –, também ampliaram a complexidade do sistema.

Neste contexto, é crucial chamar a atenção para um possível impacto além daquele associado à própria operação física: os efeitos dessas mudanças na governança do setor elétrico. Esse arranjo foi concebido em meados da década de 1990, num cenário de redução da intervenção direta do Estado, de aumento da participação da iniciativa privada e de uma matriz elétrica predominantemente composta por hidrelétricas e termoelétricas. Seus mecanismos são hierarquia, marcada por autoridade, poder e coerção, e, principalmente, mercado, pautado por incentivos, concorrência e preços orientando investimentos.

Coincidência ou não, a crescente diversificação da nossa matriz elétrica tem desafiado um dos principais órgãos que alicerçam a governança do setor elétrico: a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel). Numerosos projetos de decreto legislativo buscam anular decisões técnicas do órgão regulador, mesmo aquelas lastreadas por contratos de concessão.

É plausível, portanto, considerar a hipótese de que a diversificação da matriz elétrica brasileira esteja remodelando a governança do setor elétrico. Afinal, a introdução de novas fontes de geração de energia trouxe consigo atores com visões de mundo, modos de atuação e processos de legitimação muito diferentes, e, ao que tudo indica, organizados em redes.

Roderick Rhodes, no livro The Oxford Handbook of Public Policy, define redes como “conjuntos de vínculos institucionais formais e informais entre atores governamentais e outros, estruturados em torno de crenças e interesses compartilhados, embora interminavelmente negociados, na formulação e implementação de políticas públicas”.

O comportamento dessas redes está menos alinhado à lógica de custo-benefício, peça vital no uso do mercado como mecanismo de governança, e mais próximo de paixões e sentimentos, não captados por números frios de Análises de Impacto Regulatório (AIR), consultas e audiências públicas e modelos computacionais de planejamento e operação do setor elétrico. No mundo das redes, o processo de legitimação das decisões é em tudo diferente daquele que tem vigorado no setor elétrico. Nelas, o exercício da autoridade não se faz necessariamente pela associação de uma pessoa a um cargo público, mas pela validação de um ator por seus pares e pelo reconhecimento de sua capacidade para representá-los, cumprir acordos e resolver problemas.

Não adianta impor um arranjo de governança legitimado apenas no papel, sem ressonância nos atores atualmente presentes no setor elétrico, uma vez que a governança é uma força dinâmica e, como tal, move e envolve os atores sociais. Por isso, é crucial reconhecer a necessidade de ajustes que incorporem o máximo de atores no arranjo de governança formal e buscar novas formas de comunicação, interação e resolução de conflitos, e permitir que atores com valores, visões e interesses distintos acerca de um mesmo problema aportem conhecimento, compartilhem experiências e cooperem na concepção de uma solução em prol do bem comum.

No novo contexto do setor elétrico, o aumento do número de atores envolvidos torna a cooperação mais desafiadora; e, em meio a problemas complexos, como os atuais enfrentados pelo setor elétrico, a coordenação passa a ser fundamental para mostrar a esses atores a importância da atuação conjunta e expor os problemas causados pela competição por privilégios a que temos assistido hoje. Dessa forma, é urgente identificar, dar voz, valorizar e legitimar lideranças que construam confiança entre os atores, promovam uma compreensão compartilhada dos problemas, das regras e dos resultados pretendidos e, sobretudo, que sejam capazes de viabilizar consensos entre agentes diferentes. Só assim poderemos produzir decisões harmoniosas e benéficas para todos.

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DOUTORANDO EM POLÍTICAS PÚBLICAS PELA ESCOLA NACIONAL DE ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA (ENAP), MESTRE EM ECONOMIA PELO CEDEPLAR/UFMG, FOI SECRETÁRIO-ADJUNTO DE ACOMPANHAMENTO ECONÔMICO DO MINISTÉRIO DA FAZENDA

Opinião por Rutelly Marques da Silva