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Opinião|De braços abertos para o fracasso

São Paulo pode cometer o mesmo erro da Califórnia, ao insistir em políticas públicas de resultados efetivos esquálidos para o problema dos sem-teto

Um levantamento do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) revelou que a população em situação de rua no País aumentou 211% entre 2012 e 2022, chegando a 281,5 mil pessoas. O crescimento, exponencial, foi muito maior do que o aumento do número de brasileiros (11%, entre 2011 e 2021).

O desafio para equacionar a questão dos sem-teto é gigantesco, e o problema não se restringe ao Brasil, sendo também uma realidade de grandes cidades de países desenvolvidos, como os EUA, e envolvendo aspectos complexos como criminalidade e drogadição. Não há solução rápida e fácil, como alguns gestores públicos acreditam e propalam.

Recentemente, o canal de YouTube California Insider New publicou alguns vídeos sobre a situação dos moradores de rua (homeless) de Los Angeles. Os episódios demonstram como oferecer moradia sem proporcionar a devida reabilitação aos sem-teto se revelou um verdadeiro fracasso como política pública.

Isso porque, conforme explicou o empreendedor imobiliário Izek Shomof, entrevistado para os programas, muitos desses sem-teto são o que ele define como unhousebles (uma neologia para definir pessoas que não reúnem, no momento, as mínimas condições para habitar uma moradia). Pode parecer contraditório, mas é um conceito interessante e que merece reflexão.

Em seu livro San Fransicko, de 2021, o norte-americano Michael Shellenberger já alertava para os equívocos do modelo de Housing-First, que é o acesso imediato a uma moradia permanente e individual como primeira medida para solucionar o problema dos moradores de rua em cidades como São Francisco, Los Angeles, Seattle, Portland e outras.

Inicialmente defensor da descriminalização das drogas e do acesso imediato à moradia como ponto de partida, Shellenberger decidiu investigar mais a fundo a questão. No livro, ele aponta que a questão central para o problema dos homeless, do avanço do tráfico de drogas, da desigualdade e das mortes por overdose nas cidades americanas – que, por sinal, só vêm aumentando – era o comportamento destrutivo da maioria dos sem-teto, 70% dos quais tinham algum tipo de transtorno de saúde mental, seja isolado ou associado ao uso de álcool e de drogas. E a taxa de mortalidade dessa população foi igualmente alta, tanto entre aqueles que receberam abrigamento quanto os que permaneceram nas ruas.

Não se trata, de forma alguma, de culpar os moradores de rua, mas de alertar que medidas paliativas e simplistas nesta área são o caminho para um fracasso retumbante, quando não para o agravamento da situação.

A cidade de São Paulo corre o risco de incorrer no mesmo erro da Califórnia, ao insistir em políticas públicas aparentemente cheias de boas intenções, mas de resultados efetivos esquálidos no que se refere à problemática dos sem-teto. Colocar moradores de rua em contêineres de quatro paredes está longe de ser uma solução, pois parte significativa dessa população se enquadra na condição, ainda que momentânea, de unhouseble, tem necessidades diversas e a grande maioria tem transtornos psiquiátricos que demandam intervenção imediata.

Ao oferecer habitação individualizada para uma pessoa com transtorno mental grave, que está com sua vida completamente desorganizada e sem autonomia, são grandes as chances de ela ou voltar para a rua ou morrer de overdose dentro de casa. Por isso é imperativo, primeiramente, estabilizar a pessoa sob o ponto de vista psiquiátrico, emocional e de uso de substâncias psicoativas.

O programa De Braços Abertos, implantado há cerca de dez anos na capital paulista para enfrentamento do problema da Cracolândia, mostrou o equívoco de pagar moradia em hotéis da região aos moradores de rua e usuários de drogas com desregulações mentais extremamente graves, que, desorganizados e desequilibrados, literalmente destruíram os estabelecimentos e voltaram a viver nas ruas. Muitos deles morreram, infelizmente.

A cidade de São Paulo tem cerca de 100 Centros de Atenção Psicossocial (Caps), dos quais um terço é de unidades especializadas em Álcool e Drogas. É perfeitamente possível a implantação de um modelo em que para cada Caps haja dois ou três serviços de moradia assistida, com monitoramento constante e multiprofissional dos sem-teto que forem encaminhados para esses locais.

Dessa forma, assim como já é feito na Unidade Recomeço da Rua Helvétia – onde há um programa de moradia assistida –, é possível realizar um acompanhamento próximo dessas pessoas, para que elas permaneçam abstinentes do uso de substâncias e se estabilizem psíquica e emocionalmente, reunindo gradativamente condições para obterem sua autonomia social e financeira.

O Treatment-First é o caminho mais adequado e humanizado, como primeira opção de intervenção para a grande maioria dos moradores de rua de São Paulo. Não adianta pular etapas, sob o sério risco de essas pessoas, mesmo com moradia fixa, seguirem reféns do tráfico e das drogas, e de terem a morte como triste destino.

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MÉDICO PSIQUIATRA, PROFESSOR TITULAR DA UNIFESP, É PRESIDENTE DA ASSOCIAÇÃO PAULISTA PARA O DESENVOLVIMENTO DA MEDICINA (SPDM)

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