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Opinião|Escravidão e sociedade brasileira

Lembrar a luta abolicionista ainda hoje é respeitar a memória de milhares de pessoas que nela se jogaram e correram riscos diversos, inclusive o de morrer

Tinha razão Joaquim Nabuco quando, no livro Minha Formação, prognosticou que “a escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil”. Em seu célebre livro-panfleto de 1883, O abolicionismo, afirmava ser a escravidão brasileira um sistema total que influenciou profundamente as instituições e o comportamento do brasileiro.

O escravismo brasileiro não foi efêmero. Ele se entranhou de tal forma no dia a dia da vida social que se prolongou por mais de 300 anos, como afirmam Manolo Florentino e José Roberto Góes no livro A paz das senzalas. Possuir escravos havia se tornado normal e natural.

Machado de Assis, com maestria, descreveu no capítulo 68 de Memórias póstumas de Brás Cubas, intitulado O vergalho, a naturalidade da relação violenta senhor-escravo, mesmo sendo o senhor um ex-escravo (Prudêncio) no episódio. Prudêncio havia assimilado o modus operandi das relações escravistas.

No alvorecer do século 18, o padre André João Antonil, no livro Cultura e opulência do Brasil por suas drogas e minas, afirmava que: “O senhor de engenho é título a que muitos aspiram, porque traz consigo o ser servido, obedecido e respeitado por muitos”. Mas o título cobiçado era inseparável da percepção de que “os escravos são os pés e as mãos do senhor de engenho, porque sem eles no Brasil não é possível fazer, conservar e aumentar fazenda, nem ter engenho corrente”.

Um sistema assim não era para durar pouco tempo. Ele criou uma extensa rede de comércio de escravos que envolveu três continentes: Europa, América e África.

Tamanha capilaridade erigiu muralhas que só lentamente desabaram no século 19 e, em vários países, só na segunda metade do século. No Brasil, só em 1888. Essa longevidade teve consequências profundas em todos os níveis da vida social. Surgiu uma cultura que não considerava errado escravizar outros seres humanos. A propriedade escravista estava disseminada por toda a sociedade e não era exclusividade só dos poderosos. Não era incomum que pobres, negros livres e alforriados integrassem o grupo dos proprietários de escravos.

A consciência da incompatibilidade entre direitos humanos e escravismo, hoje tão natural, demorou a aparecer. A tal ponto que instituições religiosas no Brasil e alhures possuíam enormes plantéis de escravos e só nos estertores da escravidão os libertaram.

A luta pelo fim da escravidão foi o mais importante movimento social da história do Brasil. Formas diversas de luta, avanços e recuos, tergiversações, mobilização social de diversos atores sociais e de diversas instituições foram fundamentais para finalizar o escravismo. A luta, sobretudo nos anos 1880, reverberava no Parlamento, no Judiciário, na imprensa, nos teatros, nas ruas, praças e senzalas, como demonstrou a historiadora Angela Alonso no livro Flores, votos e balas. O movimento abolicionista brasileiro (1868-1888). Não à toa, entre os maiores líderes do abolicionismo brasileiro estavam parlamentares, juízes e jornalistas. Luiz Gama, Joaquim Nabuco, o senador Dantas, José do Patrocínio, Antônio Bento e André Rebouças, entre outros, estavam na linha de frente do movimento.

Hoje há questionamentos e releituras sobre a forma tomada pelo fim da escravidão no Brasil. O que não pode ser negado são a intensidade da luta e o envolvimento da sociedade. As condições políticas da época dificultaram os avanços preconizados por setores mais avançados do movimento para completar e aperfeiçoar a abolição. Feita a abolição, num primeiro momento foi importante resistir à luta dos antigos proprietários escravistas por indenização. Um ano e seis meses depois, ruiu a monarquia e a emergente República, mergulhada em conflitos, nada fez para amenizar o passivo histórico dos ex-escravos. Os fautores da República não tinham sensibilidade social para a questão da integração dos setores marginalizados, sobretudo dos negros, ex-escravos e seus descendentes, de forma mais justa à sociedade. Tarefa que coube às gerações futuras e que hoje é um imperativo para a sociedade brasileira.

Isso não impediu que a data da abolição fosse lembrada e festejada em todo o Brasil por longo tempo, como atestam inúmeros documentos de variados tipos, inclusive matérias do jornal A província de São Paulo, ancestral deste Estadão (15/5/1888; em todos os dias da semana da abolição; 13/5/1893; 13/5/1896; 13/5/1897; 13/5/1918). O mesmo fenômeno se repetiu em jornais de grandes centros e do interior.

A luta abolicionista tinha sido dura e renhida para ser esquecida ou menosprezada. Lembrá-la ainda hoje é respeitar a memória de milhares de pessoas que nela se jogaram e correram riscos diversos, inclusive o de morrer. Não há incompatibilidade entre essa atitude e a consciência de que há um passivo histórico que tem de ser enfrentado pelo Estado brasileiro como forma de construir uma sociedade justa e sadia, um sonho em construção e que tem de ser acelerado.

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É DOUTOR EM CIÊNCIAS SOCIAIS

Opinião por Isaías Pascoal
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