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Opinião|Inovação na área da saúde e judicialização de conflitos

Se viceja o futuro das novas tecnologias na saúde, o mesmo não se pode dizer sobre a mudança da cultura para solucionar as disputas decorrentes

As inovações tecnológicas que vêm transformando a humanidade têm impactado as mais diversas áreas do saber, com menor ou maior resistência, mas sempre impelindo adaptações e novas reflexões. A área da saúde não é exceção à regra e, especificamente no que diz respeito à área médica, há regulamentação do Conselho Federal de Medicina (CFM) sobre telemedicina desde 2002.

As restrições impostas pela crise humanitária do coronavírus (Sars-CoV-2) resultaram na quebra de inúmeros paradigmas e preconceitos com relação à utilização da tecnologia para o desenvolvimento das mais diversas atividades do conhecimento humano. Se antes da crise a utilização da tecnologia na área da saúde sofria certa restrição, durante a pandemia foi alçada à única opção e firmou-se no pós-pandemia com a transformação cultural resultante do chamado novo normal.

As possibilidades são infinitas para o desenvolvimento de soluções voltadas ao setor da saúde. Não apenas no que diz respeito ao atendimento de comunidades sem qualquer prestação de serviço para o cuidado com a saúde das pessoas que lá residem, que poderão contar com a expertise e a intervenção de profissionais da área da saúde domiciliados em outras regiões, como também se viabiliza o uso racional de suprimentos que são consideravelmente escassos, como a limitação física dos hospitais para o atendimento presencial.

O atendimento médico para aqueles que vivem em áreas mais afastadas dos grandes centros urbanos, onde tradicionalmente não se consegue fixar quadro de técnicos da área da saúde, torna-se tão crível quanto a troca de experiência técnica entre profissionais, independentemente do local onde estão alocados, somando conhecimento para o cuidado clínico nas mais distintas situações.

E, se o padrão ouro para o atendimento médico prossegue sendo o presencial, segundo o Conselho Federal de Medicina (art. 6.º, § 1.º da Resolução CFM n.º 2.314/2022) e a Associação Médica Mundial (declaração da AMM sobre a ética da telemedicina), surpresa não haverá se num futuro próximo a tecnologia propiciar padrão de atendimento equivalente, ou melhor, aos modos de exercício não presencial.

Quaisquer que sejam as perspectivas, observados o esteio fundamental da ética médica e a indispensável preparação do profissional da saúde – e dos centros de atendimento –, o futuro na área é alvissareiro. Ganha a sociedade como um todo.

Evidentemente que novas tecnologias, em qualquer área do conhecimento, também trazem novos desafios, que nem sempre são bem administrados. Se é certo que o conflito faz parte do convívio social, da vida em sociedade, não menos correto é dizer que ainda pacificamos mal essas ocorrências, utilizando de forma monocromática o caminho do Poder Judiciário, quando a paleta é consideravelmente colorida.

São inúmeras as formas de resolução de conflitos admitidas pelo ordenamento jurídico pátrio, para além da interferência estatal pela via do Poder Judiciário, mas prosseguimos concentrando as tentativas de resolução de conflitos no órgão estatal, o que ocasiona o congestionamento dos processos, a lentidão na apresentação de uma solução e gastos incrementados a cada ano, em prejuízo de outros setores também essenciais.

O debate sobre inovação na saúde, hoje tão acalorado e abarcando área da ciência humana que, até pouco tempo atrás, era reticente ao incremento da técnica por meio da tecnologia, não tem refletido sobre as possibilidades de resolução de conflitos neste ambiente, a não ser a crítica, injusta, à judicialização. Injusta porque o setor não trabalha as alternativas que tem ao Poder Judiciário para solucionar disputas. Se o hábito faz a boca torta, não será o hábito o fio condutor da inovação, do prisma das novas possibilidades.

As relações estabelecidas na área da saúde são de extrema confiança, sensibilidade e confidencialidade, o que já denota a acurácia indispensável para a pacificação de conflitos que eventualmente emerjam dessa relação. A característica descrita demanda a resolução por meio do uso da técnica da mediação. Todavia – e este é outro ponto essencial –, a discussão não gravita em torno do melhor meio de resolução de conflitos para a hipótese, mas sim para o fato de que a tentativa de solução, muito provavelmente, se dará num ambiente analógico, com pouca inovação. A sina se repete: para um mundo cada vez mais digital, o conflito, ainda que gerado nesse ambiente digital, tende a ser resolvido num processo de papel.

São pouquíssimas as iniciativas de desenvolvimento de plataformas aptas à resolução de conflitos utilizando a criatividade e a tecnologia para auxiliar as partes envoltas numa espiral conflituosa. E as poucas iniciativas existentes não são utilizadas para a pacificação nas relações na área da saúde, o que está a demandar a reflexão dos profissionais e das instituições da área.

Se viceja o futuro das novas tecnologias na área da saúde, não se pode dizer o mesmo com relação à transformação da cultura para a resolução dos conflitos decorrentes. Com isso, perde o sistema como um todo.

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ADVOGADO, MESTRE EM DIREITO (PUC/SP), AUTOR DE ‘PREVIDÊNCIA PRIVADA E ARBITRAGEM’, COCOORDENADOR DO LIVRO ‘RESOLUÇÃO DE CONFLITOS EM CONTRATOS DE SEGUROS E RESSEGUROS’, FOI PROCURADOR-GERAL FEDERAL DA PROCURADORIA-GERAL FEDERAL

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