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Opinião|O debate sobre as drogas

Usar maconha ainda é crime, mas, além disso, gera milhares de prisões, equivocadas, pelo crime de tráfico

Ao contrário do que o senso comum possa levar a constatar, o uso de maconha e de qualquer outra droga ilícita ainda é crime no Brasil. O artigo 28 da Lei de Drogas continua vigente ao criminalizar a conduta de quem “adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização”. O que houve a partir da promulgação desta Lei de Drogas (n.º 11.343/2006) foi a despenalização da conduta de uso, que não mais é sancionada com pena privativa de liberdade.

As penas para o usuário, conforme o artigo 28, passam a ser de advertência sobre os efeitos da droga, a prestação de serviço à comunidade, medida educativa com comparecimento a programa ou curso educativo, além da possibilidade de admoestação verbal, constante de reprimenda verbal, e multa aplicadas ao usuário que não cumpre as sanções impostas.

Neste momento, nosso sistema jurídico passa por novo debate acerca do uso de drogas: está em discussão no Supremo Tribunal Federal (STF) a possibilidade de descriminalização do uso da maconha, especificamente por meio do julgamento do Recurso Extraordinário 635.659.

O presente debate é absolutamente necessário, haja vista o impacto da Lei de Drogas na superlotação carcerária, tendo como pontos centrais duas questões importantes: o direito à privacidade e intimidade num crime de vício que não gera dano, bem como a seletividade penal criada pela lei, ao não definir quantidade mínima para caracterização de uso ou tráfico de drogas.

O Brasil é o terceiro maior país em população carcerária do mundo, ficando atrás apenas de EUA e China. Temos hoje quase 1 milhão de pessoas presas, sem levar em consideração os mandados de prisão ainda não cumpridos, pelos mais variados motivos. O número de presos no País sofreu aumento de 257% entre os anos 2000 e 2022, havendo hoje no sistema prisional um déficit de quase 250 mil vagas – o que implica afirmar a superlotação e a ausência de condições mínimas de habitabilidade e de higiene, para não dizer sobrevivência, nas celas espalhadas em todos os Estados.

A superlotação carcerária tem impacto profundo não só na violação de normas constitucionais e tratados internacionais, mas também no cumprimento dos objetivos da pena, como a recuperação e reinserção social do condenado. O número excessivo de pessoas presas impacta drasticamente no oferecimento de programas de educação e no acesso a saúde, tratamento e a postos de trabalho – menos de 40% das pessoas presas têm efetivamente acesso a esses direitos.

A submissão do preso a tratamento desumano e cruel bestializa, comprometendo a reinserção social desses sujeitos e agravando a crise de segurança pública. A violência institucionalizada pelo Estado criou ainda terreno fértil para a multiplicação de facções criminosas, que hoje dominam as cadeias.

E o que a Lei de Drogas e a descriminalização do uso da maconha têm que ver com isso? O crime de tráfico de drogas, previsto na Lei de Drogas, lidera o ranking dos delitos cometidos pelos detentos no País, seguido dos crimes de roubo e furto. Aqui, o problema da ausência de previsão para distinção entre uso e tráfico na Lei de Drogas é evidente.

Os votos no STF favoráveis à descriminalização do uso da maconha são acompanhados da necessidade de determinação de quantidade mínima para caracterização do crime de tráfico – com até 60 gramas ou 6 plantas fêmeas estaria caracterizado o uso. Isso porque a falta dessa previsão legislativa faz com que haja desigualdade na análise e na identificação do crime de uso nos casos concretos.

Em seu voto, Alexandre de Moraes se utiliza de estudos realizados pela Associação Brasileira de Jurimetria, que identificou que jovens negros e analfabetos são considerados traficantes com muito maior frequência do que pessoas mais velhas, brancas e com diploma de ensino superior, mesmo que apreendidos com a mesma quantidade de droga.

“Triplicou em seis anos o número de presos por tráfico de drogas, mas não triplicamos o número de presos brancos, com mais de 30 anos e ensino superior, e sim o de pretos e pardos sem instrução e jovens. É preciso garantir a aplicação isonômica da Lei de Drogas para evitar que, em virtude de nível de instrução, idade, condição econômica e cor da pele, você possa portar mais ou menos maconha” (Alexandre de Moraes).

Mas, para além do argumento da seletividade penal propiciada pela lei, outro argumento está em voga no julgamento do STF, e diz respeito ao direito à intimidade e à privacidade do sujeito em fazer uso da droga.

O crime de vício – abrangido aqui o uso de drogas –, assim como a prostituição e os jogos de azar, é classificado, inclusive pela doutrina internacional, como crime que não acarreta dano a bem jurídico outro, que não o do próprio autor, no caso o usuário da droga. Assim, caberia ao autor da conduta, maior e capaz, a liberalidade de executá-la ou não. Gilmar Mendes, em seu voto, afirma: “A criminalização da posse de drogas para uso pessoal conduz à ofensa à privacidade e à intimidade do usuário. Está-se a desrespeitar a decisão da pessoa de colocar em risco a própria saúde”.

A bebida alcoólica, o cigarro, tradicional ou o eletrônico, a maconha, remédios utilizados de maneira indevida e sem prescrição médica são todas substâncias que comprometem a saúde do indivíduo e devem ser evitadas. Mas o controle e a diminuição do uso de substâncias ilícitas como a maconha passam por políticas de saúde pública e de educação, e não de abstinência e criminalização, conforme previsão atual da Lei 11.343/2006.

Países como EUA, Canadá e Uruguai fazem parte do grupo que já identificou o fracasso da guerra às drogas nos moldes atualmente praticados pelo Brasil, na qual quem é reiteradamente vencedora é a droga.

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PROFESSORA DA ESCOLA DE DIREITO DA PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ (PUC-PR), É PROFESSORA DA PÓS-GRADUAÇÃO EM CRIMINOLOGIA E PERÍCIAS CRIMINAIS DA PUC-PR

Opinião por Kauana Vieira da Rosa Kalache

Professora da Escola de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR), é professora da pós-graduação em Criminologia e Perícias Criminais da PUC-PR