Foto do(a) page

Conheça o Espaço Aberto na editoria de Opinião do Estadão. Veja análises e artigos de opinião em colunas escritas por convidados e publicadas pelo Estadão.

Opinião|Transplante com utilização de rins de animais: o quão próximo está de se tornar realidade?

A transição do modelo experimental para a realidade clínica abre inúmeras perspectivas, mas também suscita reflexões importantes

Por Affonso Celso Piovesan

Recentemente foi realizado nos Estados Unidos o primeiro transplante renal utilizando-se rim de porco para um paciente vivo em hemodiálise. Além de tornar-se um marco na história da medicina, esse evento abre inúmeras perspectivas e questionamentos para a área de saúde relativos a aspectos assistenciais, econômicos e humanitários.

Vários desafios foram superados para que esse procedimento se tornasse realidade. Primeiramente, foi necessário identificar as proteínas de membrana (antígenos) presentes nas células do rim do porco, responsáveis pelos processos de rejeição. Em seguida, identificar, entre os extensos segmentos de DNA do animal a região responsável pela produção dessas proteínas, desenvolvendo uma estratégia para suprimi-la, ainda na célula embrionária. O terceiro passo consistiu em implantar esses embriões modificados no útero de porcas e acompanhar o nascimento e crescimento desses animais até a vida adulta, quando estão prontos para se tornar doadores.

Esses porcos, no entanto, demandam ser criados em ambientes de extrema esterilização, pois assim como em todos os mamíferos há inúmeros vírus que os colonizam em seu habitat natural. Esses vírus, se transferidos via órgão transplantado para o corpo humano, podem gerar consequências catastróficas. O atual exemplo da covid, um vírus do morcego que infectou o homem, justifica essa preocupação.

De 2021 a 2022, todos esses desafios foram superados. Os primeiros transplantes renais com rins suínos foram realizados nas Universidades do Alabama e de Nova York. Esses transplantes foram feitos em pacientes em estado de morte cerebral, um tipo de coma irreversível. As famílias foram consultadas e autorizaram os procedimentos, proporcionando uma colaboração inestimável para milhares de pacientes em diálise aguardando por um órgão. O objetivo principal era confirmar que os obstáculos iniciais descritos acima poderiam ser superados.

A transição do modelo experimental para a realidade clínica abre inúmeras perspectivas, mas também suscita reflexões importantes. No Brasil, temos orgulho de possuir o maior sistema público de transplantes do mundo. A lista de espera é única, evitando privilégios. A possibilidade de comercialização de órgãos de animais poderá trazer mudanças nesse perfil. Certamente haverá maior possibilidade terapêutica para pacientes que têm condições econômicas de arcar com esses altos custos, subvertendo a democracia hoje existente no sistema de distribuição de órgãos. Ainda assim, mesmo para a população menos favorecida, haverá o benefício da diminuição na demanda para órgãos de doadores falecidos, resultando em diminuição significativa do tempo de espera em lista.

Com relação a beneficiários de planos de saúde, poderemos esperar processos de judicialização visando à universalização dessa nova terapia. Como acontece com todas as novas medicações e tecnologias, especialmente as mais dispendiosas, será necessário um período considerável até que o xenotransplante seja incluído pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS).

Do ponto de vista econômico, surge uma nova e vasta perspectiva de negócios. Setores anteriormente limitados quase exclusivamente à pesquisa, como biotérios e empresas de manipulação genética, têm potencial para se tornarem os futuros “unicórnios” da indústria farmacêutica e de insumos hospitalares. Afinal, após os transplantes de rim, é esperado que uma série de outros órgãos sejam alvo desses experimentos, envolvendo investimentos significativos e retorno financeiro substancial.

Abre-se ainda campo para manifestações de sociedades e entidades ligadas à proteção dos animais. Ao longo dos séculos toleramos a existência de comércio de animais para o consumo humano. O abate de suínos pela indústria alimentícia é amplamente aceito, mas o uso dos rins é uma novidade. Apesar de ser destinado a um propósito mais nobre como a vida, isso foge da rotina e do senso comum.

Provavelmente em um futuro breve testemunharemos todas essas mudanças. O que até a década passada parecia ser o enredo de um filme de Steven Spielberg está cada vez mais próximo de se tornar uma realidade. No Brasil, a Universidade de São Paulo (USP) vem estudando esses transplantes desde 2017. O conhecimento necessário para gerar embriões geneticamente modificados, que irão se tornar os porcos doadores, já foi adquirido e tem se mostrado viável.

Entretanto, esbarramos na dura realidade do Terceiro Mundo: não há no País um biotério com tecnologia capaz de criar esses porcos de forma segura. Em março de 2022, o governo do Estado de São Paulo, de forma pioneira, iniciou um investimento de cerca de R$ 50 milhões com esse fim, representando uma rara ocasião em que a inciativa pública se antecipou à privada. Com isso podemos ter a esperança de que o Sistema Único de Saúde (SUS) em breve possa oferecer à população mais carente acesso a esses novos tratamentos, talvez mesmo antes dos hospitais privados.

*

DIRETOR CIRÚRGICO DO GRUPO DE TRANSPLANTE RENAL DO HOSPITAL DAS CLÍNICAS DA FACULDADE DE MEDICINA DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

Opinião por Affonso Celso Piovesan

Diretor cirúrgico do Grupo de Transplante Renal do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo