Foto do(a) page

Conheça o Espaço Aberto na editoria de Opinião do Estadão. Veja análises e artigos de opinião em colunas escritas por convidados e publicadas pelo Estadão.

Opinião|Zoneamento, tombamento e jabutis no caminho

A maior inovação na questão urbana passa por preservar e potencializar ainda mais a cultura e a história em São Paulo

A revisão da Lei de Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo de São Paulo – popularmente chamada de zoneamento – está com o prefeito Ricardo Nunes para sanção até esta semana. A inclusão de última hora dos artigos 89, 90 e 91, merecedores de veto, chama a atenção, uma vez que buscam alterar como se faz o tombamento em São Paulo, submetendo-o à aprovação dos vereadores.

Sem entrar no mérito da legalidade do texto, é importante entender como se dão as decisões sobre o que deve ser preservado na cidade, bem como os efeitos do tombamento e das áreas envoltórias, que são complementares ao zoneamento. Preservação e transformação podem andar juntas, articulação necessária ao enfrentamento das desigualdades e do ponto de vista da sustentabilidade. Os problemas nessa relação não são poucos nem novos, mas a solução apresentada não é uma boa saída.

O tombamento e o zoneamento, que têm interfaces, são legislações distintas. O zoneamento atinge toda a cidade, estruturando as formas de ocupação e usos permitidos, gabaritos, parâmetros de ruído, sempre em diálogo com as diretrizes gerais do Plano Diretor Estratégico (PDE). Somadas a essa lei, outras se aplicam, mas com questões específicas, tais como áreas de preservação ambiental, de interesse social, de preservação cultural e restrições de tráfego aéreo, a serem observadas.

O patrimônio cultural é um desses aspectos particulares, sendo formado por conjuntos edificados, acervos, sítios históricos, paisagens e práticas culturais variadas, reconhecidos pela sociedade e pelos órgãos de preservação a qualquer tempo. Um instrumento voltado a preservar o patrimônio cultural, capaz de impedir a destruição de áreas e bens culturais, é o tombamento, com trajetória sólida de mais de oito décadas no Brasil.

No caso da cidade de São Paulo, o Departamento do Patrimônio Histórico (DPH) foi criado junto com a Secretaria Municipal de Cultura, em 1975, o que é muito inovador. Foi o primeiro órgão municipal de patrimônio cultural do Brasil, tendo na sua lógica administrativa uma estrutura técnica capaz de organizar uma política de preservação em paralelo e articulada aos processos de planejamento e modernização da cidade. Junto ao Conpresp, conselho que passou a operacionalizar o tombamento em âmbito municipal, criado por lei dez anos depois, vinculam-se ao momento da redemocratização do País. A Constituição federal de 1988 reconhece esse sistema, bem como a Lei Orgânica do Município e o próprio PDE do município.

Já houve na estrutura municipal, de 1975 a 1985, a proteção como patrimônio histórico de áreas na cidade pelo zoneamento – as Z8-200, que dependiam de votação na Câmara Municipal. Foi suplantada pelo Conpresp, órgão municipal do Executivo criado na gestão Mário Covas, que se mostrou mais eficiente e operacionalizou um sistema de preservação completo, com tombamento, análise de intervenções, fiscalização, políticas de valorização e incentivos. Tudo isso sob a condução de um colegiado representativo, constituído para debater e deliberar publicamente as questões colocadas a partir de definições técnicas. A questão agora em xeque, portanto, não é só o tombamento, mas o sistema todo, que tende a ficar mais burocratizado com a fragmentação aprovada pela Câmara.

As mudanças introduzidas pelo texto da lei aprovada não facilitam a conexão entre preservação e transformação de áreas da cidade e sinalizam um desmonte. Sequer a proposta, que parece almejar agilizar análises de pedidos de construção em áreas tombadas e no seu entorno, tem esse efeito, uma vez que a etapa de elaboração e definição do tombamento é apenas uma parte do sistema. E deixar o tombamento para a decisão da Câmara Municipal, onde se juntará a demandas político-partidárias diversas, é perder a oportunidade de incorporar à dinâmica urbana os valores culturais e históricos reconhecidos pelo tombamento, reforçando uma visão que não atenta ao patrimônio ambiental urbano e às questões locais.

É preciso repensar como se faz a cidade, com soluções tão múltiplas quanto os problemas de São Paulo. Se a dificuldade em obter uma resposta razoável sobre a transformação da cidade tem levado moradores, incorporadoras e organizações a buscar alternativas à estrutura administrativa existente, mais do que nadar contra essa maré com a força de quatro décadas, é necessário saber usá-la para navegar. A própria Prefeitura tem proposto em programas recentes, como o Requalifica Centro, incentivos voltados à manutenção de construções existentes.

É essencial uma leitura adequada a cada localidade de São Paulo, cidade de dimensões nacionais, escutando as necessidades de suas ruas e bairros, atenta à coletividade, em todas as suas regiões. Sem abrir mão de mudanças pontuais onde forem necessárias, a maior inovação na questão urbana passa por preservar e potencializar ainda mais a cultura e a história em São Paulo, no que em nada colaboram as alterações introduzidas no zoneamento pela Câmara na última hora.

*

RESPECTIVAMENTE, É PRESIDENTE DO INSTITUTO DE ARQUITETOS DO BRASIL - SEÇÃO DE SÃO PAULO; E ANTROPÓLOGO, FOI COORDENADOR DO NÚCLEO DE IDENTIFICAÇÃO E TOMBAMENTO DO DPH

Opinião por Raquel Schenkman e Luca Fuser