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Jorge Caldeira, escritor, é membro da Academia Brasileira de Letras (ABL)

Opinião|Sem impulso das guerras, o fim do longo século 20?

A guerra nas regiões produtoras de petróleo sempre foi o último argumento para o controle da oferta. Hoje, surge um novo espectro: ‘Vai sobrar petróleo?’

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Um fato chamou a atenção de observadores do mercado de petróleo: os últimos conflitos do Oriente Médio não elevaram o preço da mercadoria, ao contrário do que aconteceu no momento da invasão da Ucrânia. Uma explicação possível foi dada por um relatório recente da Agência Internacional de Energia (IEA, na sigla em inglês): já está acontecendo um declínio relativo do consumo (ainda aumenta, mas em velocidade muito menor que a prevista).

Fosse o petróleo uma mercadoria normal, a solução para equilibrar oferta e procura seria intuitiva: baixar os preços. Mas não é: desde o final do século 19, a estrutura do mercado se baseia no controle da oferta. Quando o consumo cai, o cartel dos produtores (hoje a Opep, mas a história é tão longa que não caberia em vários artigos) determina cortes na produção, capazes de manter os preços no nível que considera confortável.

A experiência histórica brasileira ajuda a entender o problema para manter de pé um mercado com oferta controlada. Ao longo das primeiras oito décadas do século passado, o País liderou este arranjo com os preços do café. Foi ficando cada vez mais difícil. As margens elevadas serviram de chamariz para concorrentes; chegou o ponto no qual o custo do controle da oferta se tornou maior que as rendas das margens mais elevadas – e tudo desabou.

Vistas as coisas neste enquadramento amplo, o controle da oferta de petróleo já vem exigindo atos que vão além da redução voluntária da produção. Desde o final do século passado, está sendo aplicado um segundo nível de medidas: sanções internacionais contra fornecedores, digamos, com ideias próprias a respeito do que fazer com o dinheiro arrecadado. Hoje, quatro dos dez maiores detentores de reservas do planeta (Venezuela, que ocupa o primeiro lugar da lista; Irã, o terceiro; Rússia, o oitavo; e Líbia, o nono) sofrem fortes restrições para vender normalmente no mercado. Não fosse assim, a pressão da oferta seria muito maior.

A análise da IEA identifica uma fonte adicional. A queda no aumento de consumo derivaria do forte aumento de produção de energia renovável em todo o planeta – aliado ao gigantesco crescimento na produção de veículos elétricos ocorrida nos dois últimos anos.

Esta a novidade real. Por mais de um século, petróleo vinha sendo a forma de energia de menor custo e maior eficiência no mercado. Não tinha concorrência. Segundo o relatório, em 2024 os investimentos em energia renovável superarão aqueles destinados a novas instalações para sugar combustível fóssil dos subterrâneos. Afirma-se uma forma competitiva de energia.

A sumaríssima apresentação deste horizonte de longo prazo permite chegar aos acontecimentos mais recentes com outra perspectiva. A guerra nas regiões produtoras sempre foi o último argumento para o controle da oferta. Cada conflito acordava o fantasma: “Vai faltar petróleo!”. Aquilo que, realmente, parece ser um diferencial da situação atual vem a ser justamente a perda de força deste, digamos, mecanismo de última instância de incentivo aos preços altos.

Surge um novo espectro: “Vai sobrar petróleo?”. Há alguns anos os economistas que calculam investimentos de longo prazo com critérios ESG vêm alertando: existe um risco crescente de que investimentos em petróleo se tornem ativos podres. Em outras palavras, a era secular do preço controlado pode terminar numa bolha que estoura. Não que o petróleo acabe com o fim do mercado controlado. Para lembrar: o Brasil continua liderando a produção mundial de café até hoje. Mas o rearranjo para uma situação de mercado normal, regido por oferta e procura, pode trazer solavancos complicados.

A produção de energia renovável, agora concorrente, é essencialmente descentralizada e não transportável por mar. Aparece para os maiores investidores nela – China e União Europeia, justamente os maiores importadores de petróleo – como um investimento em segurança energética, em independência da pressão da oferta controlada.

Segurança seria outro fator essencial, se houver mudança. A guerra nas zonas produtoras de petróleo pode vir a ser um mecanismo com muito menos apelo no controle da oferta de energia (já que não haveria mais um mercado com um único produto dominante). Quem se livra do petróleo busca também se livrar de oscilações de preços derivadas de conflitos.

Como espelho invertido dessa opção estratégica, existe aquela da Rússia: o investimento na máquina de guerra subiu muito em relação a seu modesto PIB nos últimos dois anos – petróleo e guerra se tornaram ainda mais relevantes na produção econômica e poder político no país. E o candidato Donald Trump flerta com a ideia de transformar a máquina de defesa norte-americana em fonte de renda, sugerindo que vai cobrar por seu uso de aliados – enquanto promete aumentar a produção de petróleo (como investe em armas, o país não está submetido a cortes de produção; a guerra na Ucrânia o levou ao posto de maior produtor mundial de petróleo).

Complicações no mercado controlado de petróleo, portanto, podem trazer consigo um redesenho dos investimentos em segurança no nível planetário. A soma dos dois processos seria suficiente para justificar a pergunta do título. Pergunta de historiador, que analisa dados do passado. Sobre futuro, falam economistas e cientistas da política...

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ESCRITOR, É MEMBRO DA ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS (ABL)

Opinião por Jorge Caldeira

Jorge Caldeira, escritor, é membro da Academia Brasileira de Letras (ABL).

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