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Opinião|Devolver a capacidade de sonhar

Com recursos, disposição, organização e seriedade, é possível melhorar a vida das pessoas e abrir horizontes para jovens e crianças em condição de vulnerabilidade

Foto do author Jorge J. Okubaro

Ainda neste ano as 220 mil pessoas que vivem em Heliópolis, a grande comunidade instalada nos limites da Capital com a cidade de São Caetano Sul, ganharão uma sala de concerto para 533 espectadores e com palco para orquestra de cem músicos. O responsável pela obra é o Instituto Baccarelli, organização sem fins lucrativos que há mais de 27 anos se instalou em Heliópolis e realiza um trabalho social com crianças e jovens em situação de vulnerabilidade. Trata-se de um projeto idealizado em 2005, para abrigar a Orquestra Sinfônica Heliópolis.

O teatro não será do instituto, mas das pessoas que moram em Heliópolis, disse ao jornal Valor Econômico o diretor executivo do Instituto Baccarelli, Edilson Venturelli. Em recente conversa com pessoas às quais apresentava as obras do Teatro Baccarelli (este será o nome), Venturelli observou que o projeto não previu estacionamento de veículos. E, apontando para o pequeno estacionamento do outro lado da Estrada das Lágrimas, disse que é o suficiente. “Queremos que nosso público seja a comunidade local, que não precisa de carro para chegar aqui”, explicou. “Pessoas de outras regiões serão sempre bem-vindas, mas nosso público está aqui.”

O plano é fazer coincidir a inauguração do Teatro Baccarelli com o mês do 90.º aniversário de Isaac Karabtchevsky, regente titular da Sinfônica Heliópolis. Será, em todo o mundo, a primeira grande sala de concertos instalada em uma favela para abrigar a primeira orquestra sinfônica formada por moradores de favela.

Integração, pertencimento, convivência, interação com a comunidade são parte do ideário do Instituto Baccarelli, desde que o maestro Silvio Baccarelli (1931-2019) decidiu dedicar-se a atender aos moradores de Heliópolis, após um incêndio que destruiu parte da favela em 1996. Com o apoio de um grupo de filantropos, como o empresário Antônio Ermírio de Moraes (do Grupo Votorantim, 1928-2014) e seu amigo pessoal José Pastore (sociólogo, professor e colunista do Estadão), Baccarelli organizou a Orquestra Sinfônica Heliópolis, que tem como patrono o maestro indiano Zubin Mehta.

O instituto atende a 1.420 crianças em situação de vulnerabilidade, às quais oferece formação musical e cerca de 10 mil refeições por mês. O cardápio diário é o mesmo para as crianças, dirigentes, orientadores, professores, monitores e assistentes.

Por que música? Atuando no Instituto Baccarelli desde sua criação, seu diretor executivo entendeu que um dos graves problemas de uma favela “é a perda da capacidade de sonhar das crianças”. E a música tem uma característica particularmente marcante. “A gente sobe ao palco e as pessoas aplaudem”, diz Edilson Venturelli, ele mesmo músico, vindo de família humilde, e regente adjunto da Sinfônica Heliópolis. “Tem muita gente que trabalha a semana inteira sem ganhar um bom dia. Quando a gente sobe no palco, as pessoas batem palma. As crianças percebem que são ricas em dom e talento, que podem, sim, ser aquilo que elas quiserem ser na vida.”

Empenho de pessoas como Baccarelli, Venturelli, Antônio Ermírio, José Pastore e muitas outras foi e tem sido vital para a manutenção e expansão das atividades do instituto. É um exemplo de que, com recursos, disposição, organização e seriedade, é possível melhorar a vida das pessoas e abrir horizontes para crianças e jovens em condição de vulnerabilidade.

É sólida nos Estados Unidos a cultura de doação. O sistema tributário norte-americano estimula o setor filantrópico. No Brasil, a despeito de casos como o do Instituto Baccarelli, são bem menos evidentes os exemplos de ações de forte impacto social patrocinadas por doações.

O Orçamento da União tem reservado parte de suas verbas para instituições privadas sem fins lucrativos. A maior parcela dessas verbas é destinada aos partidos políticos. Em seguida vêm os setores de desenvolvimento energético, infraestrutura de pesquisa, saúde indígena, rede de hospitais e esporte amador, entre outros.

O mais recente censo do Grupo de Institutos, Fundações e Empresas (Gife), criado há mais de 30 anos para fortalecer a filantropia e o investimento social privado, ouviu 137 organizações e constatou que, em 2022, as aplicações em ações de filantropia somaram R$ 4,2 bilhões. Os recursos estão distribuídos por setores como educação, cultura, saúde, inclusão produtiva, defesa de direitos, combate à pobreza e sustentabilidade ambiental.

Se a solidariedade não for suficiente para estimular ações filantrópicas, há números que podem convencer mais pessoas a apoiarem financeiramente ações, projetos, programas e instituições como o Instituto Baccarelli. O Instituto para o Desenvolvimento do Investimento Social (Idis) criou um método de aferição da eficiência dos recursos aplicados em filantropia e concluiu que, no caso do Baccarelli, cada R$ 1 aplicado gerou R$ 3,49 na forma de benefícios sociais para a comunidade.

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JORNALISTA, É AUTOR, ENTRE OUTROS, DO LIVRO O SÚDITO (BANZAI, MASSATERU!) (EDITORA TERCEIRO NOME) E PRESIDENTE DO CENTRO DE ESTUDOS NIPO-BRASILEIROS (JINMONKEN)

Opinião por Jorge J. Okubaro

Jornalista, é autor, entre outros, do livro 'O Súdito (Banzai, Massateru!)' (Editora Terceiro Nome)