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O economista José Serra escreve quinzenalmente na seção Espaço Aberto

Opinião|Saneamento ambiental contra tragédias anunciadas

Brasil não pode perder mais tempo repetindo erros que custam vidas e é imperativo que o assunto seja tratado com a importância que merece

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As chuvas que têm provocado tragédias sucessivas em vários Estados do País não podem ser as únicas culpadas pelas vidas perdidas, sofrimento dos desabrigados e desalojados, bem como destruição rotineira de bens e equipamentos urbanos. Grandes enchentes e extremos climáticos intensos, como o que ceifou a vida de 65 pessoas no litoral norte de São Paulo no carnaval, são cada vez mais frequentes no Brasil e no mundo. A ausência de um verdadeiro sistema de saneamento ambiental explica grande parcela da falta de resiliência diante de tais fenômenos associados às mudanças climáticas.

O saneamento básico, conforme reforçado pela Lei n.º 14.026/20, do novo marco do setor, compreende não apenas água e esgotamento sanitário, mas também resíduos sólidos e drenagem. Há lacunas gigantescas nos quatro segmentos que compõem aquilo que a engenharia sanitária entende como saneamento ambiental. Mais de 30 milhões de pessoas não têm acesso à água tratada e as perdas na distribuição de água chegam a cerca de 40% do volume produzido. Outros 100 milhões de brasileiros não têm coleta de esgoto e há espalhados pelo País cerca de 2.100 unidades de disposição final de resíduos sólidos inadequadas, constituindo lixões ou aterros controlados – na verdade, lixões disfarçados.

As carências em drenagem explicam uma boa parte das razões pelas quais o Brasil sofre tantas tragédias anunciadas. Segundo o Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (Snis), 66,2% dos municípios não têm um mapeamento de áreas de risco de inundação; apenas 43,5% têm sistema de drenagem fluvial; e 2 milhões de domicílios estão sujeitos a riscos de inundações e deslizamentos.

Para enfrentar tal situação será necessário dar um salto no investimento no saneamento. O sucesso nessa empreitada depende de grande volume de inversões públicas e privadas, o que, por sua vez, requer uma regulação simples, clara e independente, que garanta a segurança jurídica ao prestador. Daí a importância do novo marco do setor, que estimula o investimento e busca a universalização de água e esgoto até 2033.

Um dos aspectos importantes do marco foi conferir à Agência Nacional de Águas (ANA) o papel de supervisão regulatória, de forma a contribuir com as agências infranacionais na construção institucional e padronização das normas de referência em prol da excelência técnica e da independência. Para tanto, é fundamental harmonizar a regulação num setor no qual há nada menos do que 86 agências infranacionais – 26 estaduais, 19 intermunicipais e 41 municipais.

Dados do BNDES, da Caixa Econômica Federal e da B3 apontam que, após a promulgação do novo marco do saneamento, foram realizados 13 grandes leilões, somando R$ 65,5 bilhões em investimentos contratados para os próximos 35 anos, beneficiando 31,2 milhões de pessoas. O sucesso desses pregões é apenas o início de um longo caminho, pois serão necessários vultosos investimentos no saneamento básico. Para ter uma ideia, o investimento médio em água e esgotamento sanitário do período de 2015-2021 foi de R$ 17 bilhões, ante R$ 36,2 bilhões anuais necessários para universalização de água e esgoto até 2033.

O desafio é ainda maior quando se considera que este valor de investimento anual necessário para universalização não inclui as inversões necessárias em manejo de resíduos sólidos e drenagem. Estima-se que seriam precisos R$ 70 bilhões e R$ 250 bilhões nestas duas áreas, respectivamente, para garantir atendimento universal.

Boa regulação e competição viabilizam investimentos sem onerar excessivamente a população, sobretudo os mais pobres e os que mais sofrem com a falta de saneamento pela exposição a doenças e por habitar em áreas de risco, degradadas pela poluição dos cursos d’água e sujeitas a enchentes e deslizamentos. Aliados à boa gestão, podem promover estruturas tarifárias mais justas nas quais as famílias em vulnerabilidade acessem uma tarifa social compatível com a sua capacidade de pagamento.

O novo marco não está restrito a água e esgotamento sanitário. A Norma de Referência n.º 1/2021 da ANA dispõe sobre o regime, a estrutura e parâmetros da cobrança pela prestação do Serviço Público de Manejo de Resíduos Sólidos Urbanos (SMRSU), bem como os procedimentos e prazos de fixação, reajuste e revisões tarifárias.

O caminho é desafiador, mas os benefícios são enormes. Estudo da GO Associados para o Instituto Trata Brasil revelou que um investimento anual de R$ 36,2 bilhões para universalização dos serviços apenas de água e esgoto até 2033 acarreta efeitos multiplicadores expressivos, com a geração de 851 mil empregos; R$ 117 bilhões de produção; e R$ 2 bilhões de arrecadação de impostos.

As perspectivas de mudanças trazidas pelo novo marco devem ser mantidas apesar de trocas de governo. O Brasil não pode perder mais tempo repetindo erros que custam vidas e é imperativo que o saneamento ambiental seja tratado com a importância que merece. Parafraseando o escritor peruano Mario Vargas Llosa, “o objeto que representa a civilização e o progresso não é o livro, o telefone, a internet ou a bomba atômica. É a privada”.

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ECONOMISTA

Opinião por José Serra

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