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Mais um capítulo da ficção orçamentária

Ano após ano, seja qual for o governo, o Orçamento traz receitas irreais e despesas subestimadas. É o resultado da sobreposição de regras que fazem com que a conta simplesmente não feche

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Por Notas & Informações
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A proposta de Orçamento apresentada ao Congresso já contava com certo otimismo no que diz respeito às receitas, mas ainda não se sabia que o governo estava imbuído desse mesmo tom esperançoso ao estimar as despesas previstas para o ano que vem. Reportagem publicada pelo Estadão mostrou que o valor atribuído ao pagamento de benefícios do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) estaria subestimado em algo entre R$ 10 bilhões e R$ 20 bilhões.

Não é difícil chegar a essa conclusão. Basta considerar que o governo projetou um aumento de 5% nas despesas com a Previdência Social, desprezando o fato de que a mesma peça prevê um reajuste de 7,65% para o salário mínimo, piso que serve como referência na fixação dos pagamentos. A equipe econômica rejeitou essa tese e reafirmou a intenção de economizar até R$ 10 bilhões com a adoção de medidas para combater irregularidades no INSS, embora as filas apontem para uma demanda reprimida de 1,69 milhão de benefícios a serem concedidos.

Da mesma forma, o governo estimou gastos de R$ 169,5 bilhões com o Bolsa Família em 2024, embora as despesas com o programa devam chegar bem próximo ao patamar de R$ 180 bilhões neste ano. No caso do Bolsa Família, o pente-fino para apurar fraudes tem surtido um efeito bem menor que o inicialmente projetado. Em contrapartida, novas famílias incluídas neste ano reverteram, em parte, a economia gerada pela exclusão daquelas que se dividiam artificialmente para auferir dois benefícios.

Como já dissemos neste espaço, a reavaliação de práticas e processos internos deve ser parte de um esforço permanente do Estado para reduzir o índice de falhas na concessão desses benefícios. Afinal, uma vez aprovados, eles se tornam parte de despesas fixas e de caráter obrigatório da União – ou seja, não podem ser cortadas nem contingenciadas. Não é possível, no entanto, classificar este pente-fino como corte de gastos, demanda certamente indigesta, mas fundamental para colocar o Orçamento de pé no médio e longo prazos.

Isso não seria um problema tão grande, se as receitas com as quais o governo conta no ano que vem fossem minimamente realistas. Mas o fato é que não são. Construir maioria no Legislativo para aprovar a taxação das apostas esportivas, dos fundos exclusivos e das offshores já será bastante desafiador, mas, segundo a colunista Adriana Fernandes, até mesmo receitas que dependem apenas do próprio governo, como as relacionadas a concessões de infraestrutura, estariam infladas, considerando a carteira de projetos a serem leiloados em 2024.

Subestimar despesas fixas gera, como consequência, uma necessidade de aumentar o contingenciamento de gastos não obrigatórios para cumprir a meta fiscal. O termo que define a rubrica orçamentária não faz jus à sua relevância. Nela se incluem investimentos, cruciais para o crescimento econômico; emendas parlamentares, sem as quais o Executivo não consegue apoio suficiente para votar qualquer projeto; e dispêndios como faturas de água e energia, cuja inadimplência impede o funcionamento das estruturas físicas do governo.

Esse contexto faz do Orçamento, ano a ano, uma peça de ficção. Não há exatamente má-fé por parte da equipe que elabora a peça, mas o resultado da sobreposição de regras que impõem pisos mínimos, tetos máximos e reajustes indexados, passando por fundos e tipos de transferência cuja execução conta com o privilégio de estar livre de qualquer limite.

A realidade é que a conta simplesmente não fecha, sobretudo quando o objetivo anunciado é zerar o déficit fiscal de um ano para o outro sem realizar reformas estruturais. Diante de uma meta tão ambiciosa quanto irrealizável, cabe ao governo explorar as possibilidades de empoçamento e execução na boca do caixa, bem como os limites autorizados pelo arcabouço, para impedir que o buraco que já está contratado se amplie ainda mais. Ao ministro da Fazenda, Fernando Haddad, resta resistir a pressões de todos os lados para flexibilizar a meta, nem que isso se sustente apenas no discurso e no papel.