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Sociólogo, membro da Academia Brasileira de Ciências e ex-presidente do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), Simon Schwartzman escreve mensalmente na seção Espaço Aberto

Opinião|A radicalidade de Inez

Inez faz parte da história das mulheres brasileiras e cariocas, radicalmente modernas, que precisa ser mais bem contada, antes que a pós-modernidade as sepulte de vez

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“Ser radical é tomar as coisas pela raiz. Ora, para as pessoas, a raiz é a própria pessoa” (Karl Marx)

Neste mês me despeço de Inez Farah, companheira querida de meio século. Neta de imigrantes, carioca, professora, psicóloga, mãe, Inez faz parte da história das mulheres brasileiras e cariocas, radicalmente modernas, que ainda precisa ser mais bem contada, antes que a pós-modernidade as sepulte de vez.

No início do século 20, imigrantes de Portugal, Itália, Japão, mas também do Oriente Médio e da Europa Central, vinham aos milhões para o Brasil, fugindo das guerras e perseguições, buscando um lugar onde pudessem viver em paz, trabalhar e formar suas famílias. Os avós de Inez, cristãos sírio-libaneses, tal como os meus, judeus, faziam parte dessas levas, trabalhando no comércio, dando crédito quando as grandes lojas ainda não existiam, e investindo na educação dos filhos. Os homens iam à luta para ganhar dinheiro e as mulheres se casavam cedo, tinham um filho por ano e se refugiavam na religião. Não Inez. Uma de sete irmãos, não escapa da primeira comunhão e é enviada cedo para o Colégio dos Santos Anjos em Vassouras. Indisciplinada, aproveita as detenções de fim de semana para se tornar amiga das madres francesas e conversar sobre literatura e artes. Depois se muda do interior para a casa da avó na zona norte do Rio de Janeiro, onde se prepara para ingressar no Instituto de Educação.

Nos anos 50, no Brasil, poucos estudavam e metade da população era analfabeta. Mas o País se modernizava e as famílias tradicionais no Rio de Janeiro mandavam seus filhos para os colégios católicos, como o São Bento e Santo Inácio, para os homens, e o Sacre Cœur de Marie, para as moças. Para os filhos de imigrantes e das novas classes médias, as alternativas eram o Colégio Pedro II e o Instituto de Educação, públicos e gratuitos, que davam acesso às carreiras universitárias para os homens e ao magistério para as mulheres. Os exames de admissão eram difíceis, os professores, os melhores que havia, e a educação, laica. Inez se encanta com a qualidade do ensino e das instalações do instituto, participa do grêmio e do jornal dos estudantes. Em 1958, aos 19 anos, se forma como professora e já sai contratada pelo governo do Estado. Enquanto alfabetiza crianças na zona norte, candidata-se para o novo curso de Psicologia na Pontifícia Universidade Católica (PUC), na zona sul. Forma-se em 1962 e é promovida, no Estado, para trabalhar no “Serviço de Ortofrenia e Psicologia”, do Instituto de Pesquisas Educacionais.

A palavra “ortofrenia” era um resquício das ideias eugenistas que imperavam na saúde pública brasileira até antes da guerra, e o trabalho incluía a seleção de diretores de escola e orientação psicológica para orientadores educacionais e professores. Mas o que interessava, mesmo, a Inez era o entendimento radical que a psicanálise havia trazido sobre o desenvolvimento da personalidade infantil, por meio de autores ingleses como Melanie Klein, D. Winnicott e W. R. Bion, cujos livros fazem parte de sua biblioteca daqueles anos. Independente e, agora, com dinheiro, compra um pequeno apartamento em Ipanema, frequenta as praias da zona sul e começa a trabalhar como psicóloga clínica. Não atua na política, mas tem lado: depois do golpe de 64, por mais de uma vez seu velho Fusca serviu para transportar militantes escondidos, e teve a casa invadida por militares armados em busca de um irmão.

A prática da psicanálise naqueles anos era controlada por médicos, quase todos homens, reunidos nas sociedades psicanalíticas. Inez contribui para quebrar o monopólio ao dar aulas e organizar um curso pioneiro de especialização em psicologia clínica na PUC, cujas alunas eram sobretudo mulheres. Logo depois surge outro monopólio, o dos graduados em mestrados e doutorados. Inez não vê sentido em fazer, só pelo título, uma pós-graduação em psicologia experimental, e acaba deixando a universidade. Aos poucos, os antigos monopólios são substituídos por novos modismos das diferentes correntes psicanalíticas, aos quais Inez, cética, se recusa a aderir. Na busca de novos caminhos, se especializa em terapia de família e promove a tradução, para o português, do livro de T. Berry Brazelton sobre crianças e mães, que nos ensina que cada criança é única e precisa ser reconhecida e respeitada em suas diferenças pelos pais, ao mesmo tempo que cada um, à sua maneira, pode sempre mais.

Profissional estabelecida, passados dos 30 anos, era chegada a hora de investir na própria família, ao mesmo tempo que continua a marcar a vida de tantos em seu trabalho. Foi quando nos conhecemos, e passamos juntos décadas de muita alegria e perdas importantes, que ela vivia com força, animação e dor, muitas vezes ao mesmo tempo. Entre filhos, obras na casa, mousse de chocolate, orquídeas, viagens, pacientes e amigas fiéis de toda a vida, Inez foi sempre a grande companheira e cúmplice, minha, dos filhos e de tantos mais. Sempre radical em seu compromisso com as pessoas e moderna em aceitar as diferenças e apostar na possibilidade de cada um de construir seu caminho, como ela mesma sempre fez.

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SOCIÓLOGO, É AUTOR DE FALSO MINEIRO: MEMÓRIAS DA POLÍTICA, CIÊNCIA, EDUCAÇÃO E SOCIEDADE (INTRÍNSECA/SELO REAL, 2021)

Opinião por Simon Schwartzman

Sociólogo, é membro da Academia Brasileira de Ciências

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