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Interpretação crítica e científica das instituições e do comportamento político

Opinião|A armadilha do mal maior

Fazer vista grossa a comportamentos desviantes subverte a democracia

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Foto do author Carlos Pereira
Atualização:

Na semana passada, o laureado escritor, filósofo e neurocientista norte-americano, Sam Harris, surpreendeu o mundo quando declarou ao podcast Triggernometry, com honestidade intelectual incomum, que “Hunter Biden poderia literalmente ter cadáveres de crianças em seu porão que não se importaria.”

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Harris fez essa declaração para minimizar os supostos esquemas de corrupção na Ucrânia atribuídos ao filho do presidente dos EUA, Joe Biden, “em comparação com a corrupção com a qual sabemos que Donald Trump está envolvido”. Harris ainda argumentou que até uma conspiração da esquerda americana para que o laptop do filho do presidente Biden não fosse investigado seria justificada para evitar a reeleição de Trump, interpretada por ele como um mal muito maior.

Como se fosse possível subverter a democracia para poder salvá-la.

Carlos Pereira: 'O relativismo moral em relação à corrupção, tende a minorar as ações desviantes do indivíduo, mesmo quando predatórias'.  Foto: Ueslei Marcelino/Reuters

Larry Diamond, em seu artigo de despedida como coeditor do prestigioso periódico Journal of Democracy, afirmou, de forma categórica, que “é impossível que uma democracia se consolide quando a ilegalidade reina e a corrupção é desenfreada”.

Francis Fukuyama, ao analisar porque algumas democracias têm um desempenho ruim, enfatiza que “bom governo – ou sua versão minimamente decente, em oposição à governança predatória – é a chave para a consolidação da democracia no longo prazo”. E complementa, “é impossível controlar a corrupção se ninguém for preso por violar a lei.”

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Aqui no Brasil também existe uma percepção generalizada, especialmente entre os intelectuais e eleitores de esquerda, de que a ameaça que Bolsonaro exerce à democracia brasileira, por meio de sua flagrante retórica beligerante com as instituições e do uso de moedas nada transparentes (orçamento secreto) de recompensa ao Centrão em troca sua sobrevivência política, é uma ameaça muito maior do que à que Lula exerceu com seus esquemas bilionários de corrupção, reveladas nos escândalos do mensalão e do petrolão.

Os eleitores de Bolsonaro, especialmente os de direita, usam raciocínio semelhante, só que com o sinal trocado. Minoram os impactos das ameaças e os comportamentos desviantes de seu líder e afirmam que o grande perigo para a democracia brasileira seria, na realidade, o retorno à presidência de um “corrupto contumaz como Lula”.

Ou seja, o relativismo moral em relação à corrupção, proporcionado pelo viés ideológico e conexões afetivas do eleitor com o seu líder, tende a minorar as ações desviantes do indivíduo, mesmo quando predatórias, em prol do um duvidoso benefício coletivo. Afinal de contas, tem-se que se evitar o mal maior...l

Opinião por Carlos Pereira

Cientista político e professor titular da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas (FGV EBAPE) e sênior fellow do CEBRI.

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