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Opinião|A competência da Justiça Militar para julgar militares acusados de crimes dolosos contra civis

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I - A LEI 13.491/17

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O então presidente Michel Temer (PMDB) sancionou a Lei 13.491/2017, que conferiu competência para a Justiça Militar julgar militares acusados de crimes dolosos contra civis.

De acordo com o diploma normativo referenciado os crimes cometidos por militares contra civis deixaram de ser julgados pelo Tribunal do Júri em casos que envolvam operações de paz e de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), como quando governadores de estado solicitam o envio de tropas do Exército, Marinha e Aeronáutica para o controle de situações emergenciais. Além disso, a Justiça Militar deverá julgar os crimes praticados durante o cumprimento de tarefas estabelecidas pelo governo ou pelo ministro da Defesa.

Serão julgados pela Justiça especializada as mortes de civis causadas por militares nas chamadas missões de “garantia da lei e da ordem”, como quando governadores de estado solicitam o envio de efetivos do Exército, Marinha e Aeronáutica para o controle de situações emergenciais.

Reflexamente, foi ampliada a competência da Justiça Militar da União (JMU) para julgar civis por crimes militares, com base no art. 9º, inciso III, do CPM. Considerando que, força do art. 125, § 4º, da CF, a Justiça Militar dos Estados só julga militares estaduais, este tópico não interfere em sua competência.

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As razões para tal mudança legislativa deitam raiz na polêmica ampliação do papel das Forças Armadas na segurança pública urbana e das fronteiras, em tempos de recrudescimento da violência e do aumento do poderio de organizações criminosas. Por falta de alternativas de segurança pública civil militares têm sido utilizados pelo governo federal em operações de garantia da lei e da ordem, o que vem acentuando situações potencialmente conflitivas com civis, criminosos ou não.

A Lei tem dois artigos e seu dispositivo principal só teve em mira o art. 9º do Código Penal Militar(CPM).

O art. 2º da Lei, que previa vigência temporária, foi vetado pela presidência da República.

O art. 3º determina a vigência imediata da Lei, isto é, sem vacância.

No que diz respeito às normas de competência, a Lei aplica-se aos inquéritos e às ações penais em curso. No que tange à nova definição de crimes militares, vale a regra da irretroatividade, especificamente no tocante à inovação do inciso II do art. 9º do CPM.

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O § 1º do art. 9º do CPM (antigo parágrafo único) manteve na competência do tribunal do júri os crimes dolosos contra a vida de civis praticados por policiais militares ou por bombeiros militares e, eventualmente, também os cometidos por integrantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica em atividades não especificadas no parágrafo seguinte. Assim, em regra, militares estaduais que cometam homicídio continuam a ser julgados pelo tribunal do júri. Por sua vez, militares federais só serão julgados pelo júri federal, se suas condutas não forem praticadas nas condições delimitadas no § 2º do art. 9º.

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O § 2º do art. 9º do CPM, introduzido por essa lei, mexe em hipóteses que até agora eram (ou deveriam ser) de competência do tribunal do júri federal (art. 5º, XXXVIII, alínea ‘d’, CF).

Essas condutas passaram a ser julgadas pela JMU, se se enquadrarem nas situações previstas nos três incisos do novo § 2º. Se aí não se amoldarem, vale a regra geral do § 1º, e também os militares das FFAA serão julgados pelo júri presidido por um juiz federal nos crimes dolosos contra a vida de civis. Assim, se um crime de homicídio for praticado por um militar contra civil durante uma operação de paz, ou no curso de uma operação de garantia da lei e da ordem (GLO), a competência para o julgamento será, por esta lei, da Justiça Militar da União, e não da Justiça Federal (júri).

Além disso, a nova redação do inciso II do art. 9º do CPM atribuiu à JMU e à Justiça Militar dos Estados a competência para julgar crimes, agora considerados “militares”, que estão previstos na legislação comum, como tortura, abuso de autoridade, cibercrimes, associação em organização criminosa, formação de milícia privada etc. É ampliado o conceito de “crime militar” impróprio ou impropriamente militar, ou acidentalmente militar, para abranger também infrações penais previstas apenas na legislação penal comum, o que antes não ocorria.

II - A DISCUSSÃO COM RELAÇÃO A CONSTITUCIONALIDADE DA NORMA

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Foi ajuizada a ADIN 5.032.

Sobre ela divulgou o site Migalhas:

“Na ADIn, ajuizada em 2013, a PGR pede a declaração da inconstitucionalidade do parágrafo 7º do artigo 15 da LC 97/99, na redação dada pelas LCs 117/04 e 136/10, que detalham a atuação subsidiária das Forças Armadas em operações para garantia da lei e da ordem (GLO) e de combate ao crime.

Conforme a argumentação, o dispositivo ampliou demasiadamente a competência da Justiça Militar para crimes não diretamente relacionados com funções tipicamente militares.

O julgamento do caso foi iniciado em 2018, em plenário físico. Na ocasião, o relator, ministro Marco Aurélio, votou pela improcedência da ação.

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“A matéria é sensível, e o pronunciamento do STF inadiável, afetando diretamente as estruturas do Estado Democrático de Direito, especialmente no atual contexto de escalada da violência, não mais restrita aos grandes centros urbanos, mas pulverizada por todo o território nacional, inclusive em regiões de fronteira”, observou no início do voto.

Para o relator, a lei complementar limitou-se a preencher o espaço de conformação franqueado pela CF para o estabelecimento de normas legais na organização, preparo e emprego das Forças Armadas. Na sua avaliação, a atuação na garantia da lei e da ordem, no patrulhamento de fronteiras e nas ações de defesa civil representam a concretização da essência do estatuto militar em todo Estado moderno - “a proteção, mesmo em tempos de paz, da soberania”.

O ministro considerou imprópria a tentativa de igualar as Forças Armadas às instituições policiais ordinárias, sustentando que a ação militar na garantia da paz e da ordem social responde a parâmetros diversos, tanto em virtude da formação e do treinamento específicos de seus membros quanto pelo reconhecimento da finalidade diversa a que se propõe. Os policiais, explicou, atuam na esfera de combate à prática de ilícitos, enquanto as Forças Armadas são acionadas quando verificada a insuficiência daquelas para intervir.

“Seja no combate ao crime organizado nas favelas, nas fronteiras, nas eleições livres ou em ações de defesa civil, as Forças Armadas desempenham papel constitucionalmente atribuído na garantia da soberania e da ordem democrática, em dimensão qualitativamente diversa daquela realizada pelas forças ordinárias de segurança.”

Naquele julgamento, o entendimento do relator foi seguido pelo ministro Alexandre de Moraes, que destacou que nenhuma das atividades listadas na lei foi considerada, em qualquer decisão da Comissão de Direitos Humanos da ONU, da Corte Interamericana de Direitos Humanos ou do Tribunal Europeu de Direitos Humanos como não sendo militares ou exageradas.

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“As próprias forças de paz da ONU, quando requisitadas, exercem essas mesmas atividades”, afirmou. “Não há nos dispositivos incluídos no parágrafo 7º do artigo 15 da lei nenhuma função que não seja considerada pela própria ONU nas forças de paz como não militares”.

À época, o ministro Edson Fachin abriu divergência para reconhecer, como pedido pela PGR, a inconstitucionalidade do dispositivo impugnado, com a redação dada pelas leis posteriores. S. Exa. apresentou um histórico da definição dos crimes militares em tempos de paz nas diversas Constituições brasileiras para concluir que a Constituição de 1988 trouxe um novo quadro normativo, “extremamente sucinto e cuidadoso” ao definir a competência de como processar e julgar os crimes militares definidos em lei.

“A Constituição atual retirou o status de foro privilegiado, que diz respeito à condição do militar, aplicável apenas em razão do cargo e das atividades desempenhadas”, afirmou. “Apenas os crimes próprios, cuja realização só é possível pelo militar, é que são alcançados pela jurisdição militar, e não cabe ao legislador ampliar o escopo da Justiça Militar”.

Existem duas ações no Supremo Tribunal Federal (STF) que questionam a constitucionalidade da lei 13.491/17, ambas distribuídas para o ministro Gilmar Mendes.

Em uma delas (ADI 5901), o Partido Socialismo e Liberdade (Psol) alega que a ampliação do alcance da Justiça Militar viola a competência do Tribunal do Júri e fere tratados internacionais de direitos humanos. A Procuradoria Geral da República (PGR) concorda e acrescenta que a lei criou uma espécie de “foro privilegiado” dos militares das Forças Armadas em relação aos policiais militares estaduais, que continuam sujeitos ao júri popular.

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O Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) ajuizou a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5901, no Supremo Tribunal Federal (STF), para questionar dispositivos do Código Penal Militar, inseridos pela Lei 13.491/2017, que preveem hipóteses de competência da Justiça Militar para julgar crimes dolosos contra a vida cometidos por militares das Forças Armadas contra civis.

Para o PSOL, o artigo 9ª, parágrafo 2º, do Código Penal Militar, inserido pela Lei 13.491/2017, deixa de preservar a autoridade do Tribunal do Júri, fere o princípio da igualdade perante a lei (privilégio de uma categoria ou segmento social em detrimento da coletividade) e relativiza o devido processo legal. O partido afirma que a ação se baseia também em normas internacionais de direitos humanos.

III - UM FATO CONCRETO

Trago à colação o caso da morte do músico Evaldo dos Santos Rosa, de 51 anos, e em ferimentos em outras duas pessoas — o seu sogro e um pedestre —, em uma tarde de domingo, em Guadalupe, Zona Norte do Rio. Sabe-se que soldados do Exército que faziam o patrulhamento nas imediações de instalações militares dispararam mais de 80 tiros de fuzil contra o carro em que estavam Evaldo, o sogro, a mulher, o filho de 7 anos e a afilhada de 13.

Ainda, naquele domingo, o Exército emitiu nota informando que os militares revidaram a uma “injusta agressão” depois que bandidos abriram fogo contra a patrulha. Testemunhas, porém, deram outra versão, segundo a qual os soldados teriam confundido o carro de Evaldo com o de criminosos. De qualquer forma, a família não estava armada.

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Depois, no entanto, o Comando Militar do Leste mandou prender em flagrante dez dos 12 militares envolvidos no episódio, devido a “inconsistências identificadas entre os fatos inicialmente reportados “, informações que chegaram posteriormente ao CML e os depoimentos dos próprios agentes. Eles ficarão à disposição da Justiça Militar.

Evaldo morreu no local; o sogro foi internado, mas sobreviveu; o catador de lixo reciclável Luciano Macedo, que tentou ajudar a família, também foi atingido pelos disparos e morreu 11 dias depois.

A defesa alega que os acusados agiram “no estrito cumprimento das leis, em atos de legítima defesa e regras de engajamento”.

Em 2021, oito militares foram condenados em primeira instância por duplo homicídio.

O processo, em grau de recurso, foi encaminhado ao Superior Tribunal Militar.

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Como noticiou Bernardo Mello Franco, em sua coluna no jornal O Globo, em 6.3.24, o Relator do recurso, o tenente-brigadeiro Carlos Augusto Amaral, definiu o fuzilamento como “um erro plenamente justificado pelas circunstâncias”. Alegou que os militares teriam agido em “legítima defesa putativa” porque pensaram estar diante de “meliantes”. “Luciano representava uma ameaça imaginária”, sustentou o ministro do STM. “Não há como desconsiderar a ocorrência de um infortúnio”, concluiu.

O tenente-brigadeiro se disse convencido de que os militares “não queriam e nem objetivaram o resultado morte”. Faltou explicar que outro resultado poderia ser obtido com duas rajadas de fuzil, somando 82 tiros contra civis desarmados.

O ministro José Coêlho Ferreira acompanhou o voto do relator, que propôs reduzir as penas de 30 para 3 anos. O julgamento foi interrompido por pedido de vista.

De toda sorte, diante desse fato gravíssimo, cabe lembrar que a ele foi aplicada a Lei 13.491/17 que, como dito, foi contestada, no STF.

IV - A LEGÍTIMA DEFESA PUTATIVA

Exige-se para a legítima defesa:

  1. repulsa a agressão atual ou iminente e injusta;
  2. defesa de direito próprio ou alheio;
  3. emprego moderado de meios necessários;
  4. orientação de ânimo do agente no sentido de praticar atos defensivos.

São necessários os meios reputados eficazes e suficientes para repelir a agressão. Já decidiu o Supremo Tribunal Federal que o modo de repelir a agressão também pode influir decisivamente na caracterização do elemento em exame (RTJ 85/475-7). Nessa linha de pensar, o emprego de arma de fogo não para matar, mas para ferir ou para amedrontar (tiro fora do alvo) poderia ser considerado, em certas circunstâncias, o meio disponível, menos lesivo, eficaz e, portanto, necessário. Tal solução merece sérios debates numa sociedade que precisa combater o uso de armas.

O quadro de legítima defesa putativa assim foi conceituada por Nelson Hungria: “Dá-se a legitima defesa putativa quando alguém erroneamente se julga em face de uma agressão actual e injusta, e, portanto, legalmente autorizado à reação que empreende”.

O agente se imagina na presença de uma causa, que, se realmente existisse, justificaria sua conduta, ou seja, uma causa de justificação.

Aquele que reage a uma suposta agressão, que se mostrou real apenas em sua imaginação, e que se existisse tornaria a sua ação legítima, age em legítima defesa putativa.

É o caso de alguém que julgando-se diante de outro que poderia matá-lo, entende que seria caso de defender-se.

Certo que há, no direito penal, o conceito de crime putativo ou crime imaginário, que se distancia da tentativa inidônea (crime impossível).

Adota-se o entendimento de que a lei penal adotou a chamada teoria objetiva na distinção entre inidoneidade absoluta e inidoneidade relativa de meios e de objeto. A tentativa absolutamente inidônea fica impune.

Por sua vez, o crime imaginário é um fato que o agente julga punível, mas que, na realidade, não é definido como crime pela lei. O crime existe apenas em sua imaginação e essa errônea opinião não bastaria para torná-lo punível. Para Aníbal Bruno (Direito Penal) haveria atipicidade, ausência de tipicidade.

Para Aníbal Bruno, ainda há erro no crime putativo. O agente erra em supor criminoso o ato que pratica, na realidade não definido na lei como crime. Mas, não seria erro do agente que excluiria o tratamento penal, pois não haveria crime, porque não haveria nenhum tipo legal a que o ato praticado correspondesse. O fato na sua expressão objetiva e na sua elaboração psíquica seria totalmente estranho ao direito punitivo. Isso porque a norma proibitiva só existiria no subjetivo do agente.

Há, sem dúvida, um enorme abismo entre legítima defesa putativa e legítima defesa real. A primeira existe no conhecimento equivocado do agente em relação aos pressupostos objetivos da legítima defesa enquanto a segunda se configura com a existência concreta desses pressupostos. Aliás, dispõe o artigo 20, § 1º, do Código Penal: “É isento de pena quem, por erro, plenamente justificado pelas circunstâncias, supõe situação de fato que, se existisse, tornaria a ação legítima. Não há isenção de pena quando o erro deriva de culpa e o fato é punível como crime culposo”. O agente supõe que está agindo licitamente ao imaginar que se encontram presentes os requisitos de uma das causas justificativas presentes na lei.

Vem a pergunta: Quem atirou mais de 80 tiros de fuzil contra o carro em que estavam Evaldo, o sogro, a mulher, o filho de 7 anos e a afilhada de 13, estaria enquadrado na legítima defesa putativa? Certamente, não.

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Foto do autor Rogério Tadeu Romano
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Rogério Tadeu Romano
Procurador regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal e advogado
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