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Opinião|Não cabe à Justiça Militar julgar crimes políticos cometidos por militares

convidado
Atualização:

Vem a questão da competência da Justiça Militar instruir e julgar crimes que teriam sido cometidos por militares em 8.1.23, durante a tentativa de golpe de estado e afronta ao estado democrático.

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É discutível que estejamos no âmbito de uma investigação militar.

É certo que a doutrina, pela voz abalizada de Eugênio Pacelli (Curso de Processo Penal, 17ª edição, pág. 256), conclui que a Justiça Militar Federal julga tanto civis como militares. Mas a competência da Justiça Militar somente aprecia delitos militares, impondo-se a separação obrigatória dos processos em caso de concurso de crimes (comuns e militares), diante da absoluta especialização e especialidade dessa jurisdição.

Para Eugênio Pacelli é exatamente a motivação do agente que afastaria a aplicação do tipo penal previsto no CPM. Disse ele: “Para que se possa admitir um crime como de natureza militar, parece-nos indispensável, ou uma ação dirigida contra a instituição, ou uma ação praticada pelo militar, do mesmo modo que se exige, para os chamados crimes políticos a motivação política da conduta (Lei nº 7.170/83, artigo 2º). Ora, tampouco é suficiente a condição de militar, como, aliás, se ressaltou na decisão do Supremo Tribunal Federal”.

Há crimes propriamente militares e crimes impropriamente militares. Os propriamente militares dizem respeito à vida militar, vista globalmente na qualidade funcional do sujeito do delito, na materialidade especial da infração e na natureza peculiar do objeto da ofensa penal, como disciplina, a administração, o serviço ou a economia militar. Os crimes impropriamente militares, que podem ser cometidos por militares e ainda, excepcionalmente, por civis, abrangem os crimes definidos de modo diverso ou com igual definição na legislação penal comum. Sendo assim, crimes impropriamente militares são os que, comuns em sua natureza, podem ser praticados por qualquer cidadão, civil ou militar, mas que, quando praticados por militar em certas condições a lei considera militares, como se tem dos crimes de homicídio e lesão corporal, os crimes contra a honra, os crimes contra o patrimônio, os crimes de tráfico ou posse de entorpecentes, o peculato, a corrupção, os crimes de falsidade, dentre outros.

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São ainda impropriamente militares, os crimes praticados por civis, que a lei define como militares, como a violência contra sentinela, previsto no artigo 158 do CPM.

Há crimes militares em tempo de paz (artigo 9º do CPM) e crimes militares em tempo de guerra (artigo 10 do CPM).

Extrai-se de decisões do Supremo Tribunal Federal (v.g. RC n. 1473-SP, Rel. Min. Luiz Fux, 1ª Turma, DJ 18.12.2017), que “crimes políticos, para os fins do artigo 102, II, b, da Constituição Federal, são aqueles dirigidos, subjetiva e objetivamente, de modo imediato, contra o Estado como unidade orgânica das instituições políticas e sociais e, por conseguinte, definidos na Lei de Segurança Nacional, presentes as disposições gerais estabelecidas nos artigos 1º e 2º do mesmo diploma legal. 2. “Da conjugação dos arts. 1º e 2º da Lei nº 7.170/83, extraem-se dois requisitos, de ordem subjetiva e objetiva: i) motivação e objetivos políticos do agente, e ii) lesão real ou potencial à integridade territorial, à soberania nacional, ao regime representativo e democrático, à Federação ou ao Estado de Direito. Precedentes” ( RC 1472, Tribunal Pleno, Rel. Min. Dias Toffoli, Rev. Ministro Luiz Fux, unânime, j. 25/05/2016).

Ora, os chamados crimes militares não são crimes políticos.

Ensinou Nelson Hungria (Comentários ao Código Penal, 4ª edição, 1958, volume I, pág. 187) que os crimes políticos são aqueles dirigidos, subjetiva e objetivamente, de modo imediato, contra o Estado, como unidade orgânica das instituições político e sociais.

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Na lição de Aníbal Bruno (Direito Penal, tomo II, 3ª edição, 1967, pág. 225) há os critérios objetivistas e subjetivistas.

O critério subjetivista toma em consideração o motivo. É o caráter político do móvel que atribui natureza política ao ato.

Para os objetivistas, será político todo crime que ofende ou ameaça direta ou indiretamente a ordem política vigente em um país.

Para o caso, leve-se em conta que os acontecimentos reportados no dia 8 de janeiro de 2023 não envolvem crimes militares. São crimes políticos.

Ainda na matéria, Aníbal Bruno trouxe à colação o artigo 8º do Código Penal Italiano: “É delito político todo delito que ofende um interesse político do Estado, ou um direito político do cidadão. Considera-se também delito político o delito comum determinado no todo ou em parte, por motivos políticos”.

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Disse então Aníbal Bruno naquela obra:

“Tomado assim o conceito, tem-se procurado estabelecer entre os crimes políticos: crimes políticos próprios, os que ofendem a organização política do Estado; crimes políticos impróprios, os que acometem um direito político do cidadão. E, ainda, crimes políticos puros, os que têm exclusivamente caráter político e crimes políticos relativos, compreendo os complexos ou mistos, que ofendem ao mesmo tempo um direito político e um bem jurídico tutelado pelo Direito Penal comum, e os crimes políticos conexos a crimes políticos.”

Diverso é o crime tachado como crime social, em que o criminoso se rebela contra a organização econômico-social do mundo.

Como bem acentuou o site de notícias jurídicas Consultor Jurídico, em 27 de fevereiro de 2023, a Justiça Militar não julga crimes cometidos por militares, mas crimes militares. Assim, é de competência do Supremo Tribunal Federal processar e julgar os envolvidos nos atos de 8 de janeiro, independentemente de serem civis ou integrantes das Forças Armadas.

Com base nesse entendimento, o ministro Alexandre de Moraes, do STF, autorizou a Polícia Federal a abrir uma investigação “para apuração de autoria e materialidade de eventuais crimes cometidos por integrantes das Forças Armadas e Polícias Militares relacionados aos atentados contra a Democracia que culminaram com os atos criminosos e terroristas do dia 8 de janeiro de 2023″.

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A matéria é objeto de apreciação no Inq 4.923.

Disse, para tanto, o ministro Alexandre de Moraes:

“Em total e absoluta observância aos princípios do Devido Processo Legal e do Juiz Natural, a competência do SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL para a presidência dos inquéritos que investigam os crimes previstos nos artigos 2º, 3º, 5º e 6º (atos terroristas, inclusive preparatórios) da Lei 13.260/16, e nos artigos 147 (ameaça), 147-A, § 1º, III, (perseguição), 163 (dano), art. 286 (incitação ao crime), art. 250, § 1 º, inciso I, alínea ‘’b”(incêndio majorado), 288, parágrafo único (associação criminosa armada), 359-L (abolição violenta do Estado Democrático de Direito), 359-M (golpe de Estado), todos do Código Penal, não distingue servidores públicos civis ou militares, sejam das Forças Armadas, sejam dos Estados (policiais militares). Nos termos do art. 124, caput, da Constituição Federal, à Justiça Militar da União compete processar e julgar os crimes militares definidos em lei.”

......

Como ensinado por nosso sempre Decano, Ministro CELSO DE MELLO ( HC 106171, SEGUNDA TURMA, 1º de março de 2011): “O foro especial da Justiça Militar da União não existe para os crimes dos militares, mas, sim, para os delitos militares, tout court . E o crime militar, comissível por agente militar ou , até mesmo, por civil, só existe quando o autor procede e atua nas circunstâncias taxativamente referidas pelo art. 9º do Código Penal Militar, que prevê a possibilidade jurídica de configuração de delito castrense eventualmente praticado por civil, mesmo em tempo de paz .

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O Código Penal Militar não tutela a pessoa do militar, mas sim a dignidade da própria instituição das Forças Armadas competência ad institutionem, conforme pacificamente decidido por esta SUPREMA CORTE ao definir que a Justiça Militar não julga”CRIMES DE MILITARES”, mas sim”CRIMES MILITARES”( HC 118047, Rel. RICARDO LEWANDOWSKI, Segunda Turma, DJe de 21/11/2013; HC 107146, Rel. GILMAR MENDES, Segunda Turma, DJe de 22/6/2011; HC 100230, Rel. AYRES BRITTO, Segunda Turma, DJe de 24/9/2010; CC 7120, Rel. CARLOS VELLOSO, Tribunal Pleno, DJ de 19/12/2002).”

Em conclusão assim se manifestou o ministro Moraes:

“Inexiste, portanto, competência da Justiça Militar da União para processar e julgar militares das Forças Armadas ou dos Estados pela prática dos crimes ocorridos em 8/1/2023, notadamente os crimes previstos nos arts. 2º, 3º, 5º e 6º (atos terroristas, inclusive preparatórios) da Lei 13.260/16, e nos arts. 147 (ameaça), 147-A, § 1º, III, (perseguição), 163 (dano), art. 286 (incitação ao crime), art. 250, § 1 º, inciso I, alínea ‘’b”(incêndio majorado), 288, parágrafo único (associação criminosa armada), 359-L (abolição violenta do Estado Democrático de Direito), 359-M (golpe de Estado), todos do Código Penal, cujos inquéritos tramitam nesse SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL a pedido da Procuradoria Geral da República.”

Em face disso tem-se que a Justiça Militar não tem competência para instruir e julgar crimes políticos mesmo que cometidos por militares.

Convidado deste artigo

Foto do autor Rogério Tadeu Romano
Rogério Tadeu Romanosaiba mais

Rogério Tadeu Romano
Procurador regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal e advogado
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