O Ministério Público assumiu uma posição central no sistema de justiça criminal em várias partes do mundo. Embora suas funções e poderes variem de país para país, há uma tendência global de conceder-lhe maior discricionariedade e responsabilidade. Contudo, esse fenômeno pode causar sérios danos se o órgão ultrapassar ou se afastar de suas atribuições constitucionais.
Apesar desse protagonismo, muitos – incluindo profissionais com formação jurídica – têm dificuldade em entender plenamente suas funções, que ultrapassam o papel de acusação em processos penais, e em delimitar claramente os limites de seus poderes. A Constituição Federal é clara: o Ministério Público não só promove ações penais públicas, mas também fiscaliza o cumprimento da lei (custos legis), promove a justiça, defende a ordem jurídica, protege o regime democrático e salvaguarda os interesses sociais e individuais indisponíveis.
Portanto, ao analisar todo esse sistema de atribuições de forma holística, fica claro que o papel do representante do Ministério Público vai muito além de ser um mero acusador. Mesmo no exercício da persecução penal, o promotor/procurador deve avaliar se uma infração realmente prejudicou os interesses protegidos pela lei, se outros interesses sociais são mais relevantes que a aplicação da justiça penal e se as injustiças sociais, como no caso do furto famélico, comprometem a legitimidade do Estado para punir o réu.
Em outras palavras, é necessário ponderar se os objetivos do direito penal devem ter prioridade sobre outros objetivos institucionais do órgão que também visam a salvaguarda de interesses sociais e individuais indisponíveis. Essa perspectiva supera o ultrapassado princípio da obrigatoriedade da ação penal, que exige que o Ministério Público promova a persecução penal diante de toda e qualquer notícia de crime.
Na prática, contudo, vemos o Ministério Público brasileiro se distanciando cada vez mais de suas demais funções para exercer de forma desmedida a persecução penal, quase admitindo que o papel do promotor é garantir condenações, de modo que uma absolvição seja vista como um fracasso.
Os exemplos são diversos: denúncias por furtos de pedaços de frango avaliados em R$ 4,00; pedidos de prisão de pessoas acusadas por furto de comida vencida que iria para o lixo; condução de investigações criminais com mais autonomia do que a das polícias; negociação de acordos penais pouco transparentes; divulgação informal de investigações em andamento, gerando publicidade opressiva em julgamentos criminais; e intervenção em processos nos quais não são partes, como nos habeas corpus perante os Tribunais Superiores. Isso sem mencionar a prática recorrente do chamado overcharging, onde acusações mais graves ou múltiplas são feitas na expectativa de que o excesso será posteriormente ajustado. Exemplos dessa prática são abundantes, como o uso indevido do instituto do dolo eventual e a ampliação do conceito de “organização criminosa”.
Além disso, esse ímpeto se manifesta no âmbito regulamentar pelo Conselho Nacional do Ministério Público, que utiliza normativas supostamente administrativas com a intenção velada de legislar em matéria penal – sempre com o objetivo de endurecer a legislação penal e processual penal.
Foi nesse contexto que o Supremo Tribunal Federal deu provimento à ADI n. 5793, ajuizada pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, declarando a inconstitucionalidade de trechos da Resolução 181/2017 do CNMP, que define o procedimento investigatório criminal (PIC) como “sumário” e “desburocratizado”. Segundo o ministro relator Cristiano Zanin, a resolução não apenas ultrapassou os limites do poder regulamentar do CNMP, mas também “distanciou-se do escopo de proteção do cidadão, parte sempre muito vulnerável na circunstância de um processo criminal”.
Por meio de outra resolução que indevidamente busca legislar em matéria penal, o CNMP tentou estabelecer que, caso o investigado descumpra os termos do acordo de não persecução penal (ANPP), sua confissão poderá ser utilizada pelo Ministério Público como base para uma eventual denúncia.
A pergunta que surge é: a função do Ministério Público na democracia brasileira se restringe à “garantia de condenações penais”? Esse questionamento não é exclusivo ao Brasil. Nos Estados Unidos, a atuação dos promotores também enfrenta críticas, especialmente na negociação de acordos penais. Autores como Angela J. Davis, em seu livro “Arbitrary Justice: The Power of the American Prosecutor”, destacam como a falta de controle e a ampla discricionariedade dos promotores podem resultar em injustiças e desigualdades. Lá, inclusive, já se comenta amplamente que o Ministério Público se tornou o “juiz da causa”, dada a significativa discricionariedade para decidir quem acusar, quais acusações apresentar e que acordos de confissão negociar, muitas vezes sem uma supervisão adequada.
Para evitar que esse cenário se perpetue no Brasil, é essencial refletir sobre como reaproximar o Ministério Público de suas demais atribuições constitucionais. Somente assim podemos assegurar que o órgão contribua positivamente para a democracia e o estado de direito, evitando os riscos associados à concentração excessiva de poder.