A recente prisão dos suspeitos de terem invadido os celulares de diversas autoridades, entre políticos, juízes e promotores,"reforçou" a ideia de que as conversas vazadas até o momento são autênticas. Portanto, independentemente do caráter criminoso da invasão dos telefones, é importante avaliar o que, de fato, há de legítimo em relação a essas conversas.
Pelo que veio à luz até o momento das conversas vazadas entre o então juiz da Lava-Jato Sergio Moro e membros do Ministério Público que integram a força tarefa, pode-se afirmar, com segurança, que não há elementos suficientes que sustentem eventual pedido de nulidade dos processos. As conversas reveladas inicialmente pelo site The Intercept, e posteriormente também por outros veículos como Folha de S.Paulo, Bandnews e Veja, indicam uma intensa troca de mensagens entre os membros da força-tarefa e entre o procurador Deltan Dallagnol e o ex-juiz Sergio Moro. Num primeiro momento, tais revelações animaram os defensores da tese "Lula Livre", com a ideia de que as conversas eram suficientes em si para garantir a nulidade dos processos, já que teria havido um suposto aconselhamento do juiz ao procurador da operação. Ledo engano. Não há que se falar em aconselhamento da parte, e nada nas conversas indica que as sentenças tenham sido proferidas com parcialidade.
Mesmo estando a defesa de Lula diante deste contexto, lutando para buscar uma decisão que acolha os interesses da parte que defende -- o que é legítimo -- não se pode discutir que o art. 254, IV do Código de Processo Penal estabelece, que o juiz "dar-se-á por suspeito se tiver aconselhado qualquer das partes". Contudo, não é menos verdadeiro ser comum o juiz falar com a partes e com o Ministério Público, e recebê-los em audiências para discussão acerca do caso. Isso é muito comum e acontece com frequência, principalmente com representantes do MP.
Não é demais afirmar que o surgimento de questões como esta figuram na pauta diária de notícias, principalmente quando os players envolvidos no imbróglio são autoridades ou ex-autoridades governamentais.
Muitas opiniões de relevo são proferidas a favor ou contra a referida suspeição, outras nem tanto, mas o que chama a atenção é que quase nenhuma delas se refere propriamente às questões de ordem fática do caso em si e técnica do Direito.
A suspeição é um incidente de parcialidade do juiz, indiscutivelmente proibida em nosso ordenamento jurídico, que tem a imparcialidade como requisito de validade do processo, de modo que a suspeição, uma vez reconhecida pelo juiz ou declarada por decisão judicial de instância superior é causa de nulidade absoluta de todos os atos processuais praticados.
De outra parte, também está previsto no ordenamento jurídico brasileiro que a suspeição deve ser arguida por meio de uma "Exceção", ato jurídico que deve ser apresentado no primeiro momento em que se seguir ao conhecimento dela pela parte "prejudicada", sob pena de preclusão. Até aqui, estamos de acordo.
O imbróglio começa de fato, no caso em si, quando as provas que são arguidas como mote da suspeição do juiz são obtidas por meios ilícitos e com conteúdo duvidoso, e não podem ser aferidas com certeza absoluta de que não foram manipuladas ou fraudadas. Se fossem somente elas obtidas por meios ilícitos seria mais factível a suspeição, pois pode ser usada em favor do réu, mas não sendo inequivocamente de conteúdo intacto na origem, fragiliza e impossibilita a concessão de sua declaração.
Entretanto, o que é ainda mais conflitante na própria essência e na raiz das mensagens apresentadas para arguição de suspeição do juiz é o fato inequívoco de que a sentença condenatória proferida pelo então juiz Sergio Moro não ter qualquer correlação com o teor das mensagens supostamente trocadas com o Procurador da República, o que consolida a ideia de que nenhuma suposta "orientação" ensejou em provas que deram amparo à sentença que condenou o ex-presidente Lula, de modo que foi confirmada pelo Tribunal Regional Federal da 4.ª Região e mantida pelo Superior Tribunal de Justiça. Nesta linha de raciocínio, não havendo prejuízo à parte, a nulidade é de ser considerada relativa, portanto, sanável e sem força para anular um processo ab initio (desde o início).
Noutra seara, o art. 257 do Código de Processo Penal determina que o "Ministério Público promoverá e fiscalizará a execução da lei", cabendo-lhe, por imposição da Constituição Federal, a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis" (art. 127 da CF).
O Supremo Tribunal Federal já se manifestou a respeito: "A qualificação do Ministério Público como órgão interveniente defere-lhe posição de grande eminência no contexto da relação processual, na medida em que lhe incumbe o desempenho imparcial da atividade fiscalizadora pertinente à correta aplicação do direito objetivo." (STF-Pleno- Adin- Medida Cautelar-n.º 758/RJ- Rel. Min. Celso de Mello - Diário da Justiça, Seção I8).
O art. 127, da Constituição Federal, determina incumbir ao Ministério Público:
1) A defesa da ordem jurídica -- que significa exercer a função de custos legis (fiscal da lei);
2) A defesa do regime democrático -- que nada mais é do que a defesa da ordem jurídica e do Estado Democrático de Direito, sendo um dos seus fundamentos a dignidade da pessoa humana, que representa para o direito constitucional brasileiro, que a pessoa humana tem uma dignidade própria e constitui um valor em si mesmo, não podendo ser este sacrificado a qualquer interesse coletivo;
3) A defesa dos interesses sociais e individuais indisponíveis -- isto declara ser dever do Ministério Público zelar por todo interesse indisponível, quer relacionado à coletividade em geral, quer a indivíduo determinado.
Não se pode olvidar que o Ministério Público, por meio de seus procuradores, não é e não pode ser parte no processo, mas sim, titular de ações penais públicas em defesa da sociedade e do bem comum, que inclui, inclusive, por assim dizer, o próprio acusado, pois é franqueado à Sua Senhoria o pedido de absolvição em benefício do acusado, se assim julgar pertinente, sendo primordialmente, e acima de tudo, o fiscal da Lei. É assim que deve ser e se não é, deveria ser. Decididamente o Ministério Público não é parte e não pode jamais esquecer disso.
Conclui-se que não há que se falar em aconselhamento de parte, pois parte não é, ou ainda de nulidade absoluta, de modo que nenhuma frase até então apresentada pelo The Intercept correlacionou provas à sentença condenatória proferida pelo então juiz.
Ademais, a divulgação das supostas conversas em forma de capítulos, criando-se suspense a cada semana, não parece ser o melhor caminho. Que seja apresentado tudo para que se possa averiguar se houve ou não combinação de sentença entre o juiz e o MP, ou forjamento de provas (o que seria, isso sim, escandaloso). Pelo que se divulgou até o momento, não há razão para tamanha celeuma. O Brasil tem coisas importantes para tratar e o tempo urge. Está na hora de virarmos esta página.
*Carla Rahal, advogada criminalista, mestre e doutora em Direito Penal e sócia de Viseu Advogados
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