Suponha-se que um cidadão é preso por um Soldado da PM e o seu superior hierárquico, um Tenente da PM, determina ao SdPM que ele use de tortura para que se obtenha a confissão do crime e indicação de comparsas. O Soldado PM pode e/ou deve se recusar a cumprir a ordem do Tenente? O Estado não pode jamais se equiparar aos criminosos, tem que agir nos termos da Lei e da Constituição Federal.
Nos anos 1960, a Europa estava dividida politicamente entre a parte Comunista, Deutsche Demokratische Republik (DDR), de ideologia alavancada pela então União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), de um lado; e de outro um regime democrático, na parte ocidental, a República Federativa Alemã, ou Bundesrepublik Deutschland. Havia a realidade de uma evasão em massa, de pessoas que queriam fugir da terrível miséria opressiva da “zona comunista” para a parte ocidental; e o faziam especialmente através da cidade de Berlim, que era, por assim dizer, a porta de entrada para o mundo da vida realmente democrática. Foi nesse contexto que, em 12 de agosto de 1961, o Conselho de Ministros da então DDR (Estado criado em 1949 no território da Zona de ocupação soviética, uma das zonas territoriais ocupadas após a Segunda Guerra Mundial) resolveu fechar a passagem através de Berlim, mandando construir o conhecido “Muro de Berlim”, então chamado de Antifaschistischer Schutzwall (Muro de proteção antifascista).
O muro era extremamente vigiado para impedir a passagem das pessoas da parte controlada pela União Soviética (Comunista) para a parte controlada por Estados Unidos, Inglaterra e França (Democrática). Mesmo assim, muitos se aventuraram em tentativas e muitos morreram, vítimas de disparos de armas de fogo pelos soldados da Patrulha de Fronteira.
Nessas condições, regulamentações de serviços vigentes à época na Alemanha determinavam a realização de disparos contra as pessoas que tentassem ultrapassar a fronteira criada em Berlim pelo muro, justificando assim a ação dos Policiais da Patrulha de Fronteira, que obedeciam às ordens dos seus superiores hierárquicos.
O tempo passou e em 1989, após a queda do muro, passou-se a discutir a legitimidade daquelas ações e a possível responsabilização penal dos soldados, mas também, principalmente, dos oficiais superiores, de quem emanavam as ordens.
Abriu-se o caminho para a efetiva punição, não somente dos soldados da Patrulha de Fronteira, como também para os respectivos oficiais superiores, os detentores do “domínio daqueles fatos”. Segundo a decisão do (BGH Bundesgerichthof - STF Alemão), os membros do Conselho de Ministros dominavam os acontecimentos, pois eles possuíam um aparato de poder, por eles dirigido aos integrantes da Patrulha de Fronteira e utilizado para causar as mortes.
A doutrina do chamado “Domínio do Fato” surgiu na Alemanha, por Adolf Lobe (1933), tendo sido desenvolvida através de várias obras em face das questões relativas à autoria/participação, até o trabalho mais específico do Prof. Claus Roxin – “Autoria e Domínio do Fato” (Täterschaft und Tatherrschaft).
Basicamente, ela serve para fundamentar a responsabilização penal da pessoa do mandante do crime na condição preestabelecida de “senhor da situação”, ou aquele que detém o “domínio do fato”; aplicável especialmente, mas não só, aos chefes nas Organizações Criminosas.
O fato aparece assim como obra de uma vontade que se dirige ao sucesso. Não só é determinante para a autoria a vontade de direção, mas também o peso objetivo da parte daquele fato assumida por cada interveniente. Resulta que pode ser autor quem, segundo a importância da sua contribuição objetiva, comparta o domínio do curso do fato. Nesse contexto aquele que dá ordem para a prática de um crime, uma ação ilegal, também é autor, tanto quanto o executor, e não é apenas partícipe das consequências.
Na Alemanha, o BGH segue aplicando essa teoria subjetiva da participação, sendo considerado autor quem, com vontade de autor, realiza um “aporte causal” ao fato típico, qualquer que seja o seu conteúdo; sendo ao contrário um partícipe, quem unicamente exerce, com auxílio (material) ou instigação, a sua vontade sobre o executor.
É importante entender que a aplicação da teoria do domínio do fato se aplica tanto nos chamados “Aparatos de Poder” (Machtapparate) em Sistemas de Poder (Machtsystemen) – Estatais (Staatlichen) como também nos Não Estatais (Nichtstaatlichen); lembrando que pela concepção mais atual, tanto aquelas Estatais como estas não Estatais, ambas podem ser ou podem se converter em formas de organizações criminosas (BGH, 40, 218: Trad. Livre: “Uma autoria mediata entendida de tal maneira não somente entrará em consideração em casos de abusos de poderes Estatais, mas também na criminalidade organizada, como no modelo de uma máfia”).
Sobre esse contexto, o STF brasileiro anteriormente já se decidiu: “Ninguém é obrigado a cumprir ordem ilegal, ou a ela se submeter, ainda que emanada de autoridade judicial. Mais: é dever da cidadania opor-se à ordem ilegal; caso contrário, nega-se o Estado de Direito”. Min. Mauricio Correa/1996.
A história nos mostrou que detentores de Poder Estatal como daquele Conselho de Ministros Alemães, durante um período obscuro, emanaram ordens aos seus subalternos que, mesmo manifestamente ilegais, foram executadas contra pessoas com intenções legítimas de serem livres e de fugirem do opressivo regime Comunista. Assim muitos inocentes morreram lutando bravamente pela busca da sua liberdade, muitos outros ficaram mutilados, e outros tantos calados. A Polícia de Fronteira alemã agiu de forma truculenta e desumana, “sob ordens”, sem sequer raciocinar a respeito daquela atrocidade. Famílias inteiras foram dizimadas em decorrência da obediência irrestrita e impensada de ordens manifestamente ilegais partidas de quem detinha o “domínio do fato” e do resultado daquelas condutas, “ordens (i)legais” para a prática de condutas criminosas. Depois veio o julgamento, o verdadeiro julgamento, e com ele, a verdadeira justiça.
“O que mata um jardim não é o abandono! O que mata um jardim é esse olhar vazio de quem passa indiferente por ele”. Mario Quintana
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