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Opinião|Fatura de consumo: impressa ou digital?

convidado

Constitui conduta ilícita e abusiva praticada por empresa concessionária de energia elétrica interromper o envio da fatura impressa ao endereço do consumidor, sem requerimento deste de forma expressa, com base em suposta anuência tácita prevista na Resolução nº 928/2021 da ANEEL?

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Não há qualquer dúvida de que tal comportamento é abusivo, trazendo à margem uma realidade injusta e desigual àqueles desprovidos de internet.

A abusividade deve ser avaliada quanto à alteração do modo de envio da fatura sem que houvesse o pedido expresso e quanto à informação prestada ao consumidor.

Além disso, a concessionária não disponibiliza em seu sítio virtual o serviço de transferência de titularidade de consumo quando há débitos anteriores de terceiros.

Com efeito, estamos diante do dever de informar e o direito de ser informado.

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O amparo da informação transparente pode ser retirado do artigo 4º, caput do Código de Defesa do Consumidor, o qual estabelece que “a Política Nacional de Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo”.

O Código de Defesa do Consumidor constitui direito básico do consumidor a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade, tributos incidentes e preço, bem como sobre os riscos que apresentem; a proteção contra práticas e cláusulas abusivas ou impostas no fornecimento de produtos e serviços; a adequada e eficaz prestação dos serviços públicos em geral; e a facilitação de sua defesa e essa garantia visa proteger a parte mais fraca da relação de consumo (art. 6º, incisos III, IV, VIII e X).

Outrossim, o artigo 22 do Código de Defesa do Consumidor estabelece uma série de deveres aos fornecedores de serviços públicos, isto é, “os órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos”.

A previsão desses direitos básicos impõe ao Estado o dever de garantir aos usuários dos serviços públicos que estes atenderão adequadamente (princípio da adequação) aos fins a que se destinam, de maneira eficiente e concreta (princípio da eficiência). Desse modo, a adequação, a eficiência e a segurança da prestação do serviço público são atributos inerentes a todo e qualquer serviço prestado ao consumidor.

A Lei nº 8.987/95, em seu artigo 6º, estabelece que “toda concessão ou permissão pressupõe a prestação de serviço adequado ao pleno atendimento dos usuários, conforme estabelecido nesta Lei, nas normas pertinentes e no respectivo contrato”.

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Ainda, o parágrafo 1º do artigo 6º da supra mencionada lei, conceitua serviço adequado, como sendo aquele que satisfaz as condições de regularidade, continuidade, eficiência, segurança, atualidade, generalidade, cortesia na sua prestação e modicidade das tarifas.

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Cumpre destacar, ainda, que o artigo 4º da Lei nº 13.460, de 26 de junho de 2017, estabelece que “os serviços públicos e o atendimento do usuário serão realizados de forma adequada, observados os princípios da regularidade, continuidade, efetividade, segurança, atualidade, generalidade, transparência e cortesia”.

A proteção em matéria de informação está em consonância com o previsto no art. 5º, XIV, da Carta Magna.

O dever de informar é fonte de obrigações civis, com base na responsabilidade contratual e não um simples controle sobre a enganosidade ou abusividade da informação e traz, assim, como elemento de grande importância para que o consumidor esteja habilitado para conhecer a oferta pelos seus próprios meios, exercendo a livre escolha do que lhe é assegurado.

Quanto à amplitude do dever de informação e sua prestação adequada, BRUNO MIRAGEM[1] ensina:

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“É necessário que esta informação seja transmitida de modo adequado, eficiente, ou seja, de modo que seja percebida ou pelo menos perceptível ao consumidor. A eficácia do direito à informação do consumidor não se satisfaz com o cumprimento formal de indicar dados e demais elementos informativos, sem o cuidado ou a preocupação de que estejam sendo devidamente entendidos pelos destinatários destas informações.

(...)

O significado de adequação remete ao de finalidade. Ou seja, será adequada a informação apta a atingir os fins que se pretende alcançar com a mesma, o que no caso é o esclarecimento do consumidor”.

Nessa linha, o consumidor deve ter plena ciência do contrato e eventuais alterações promovidas, assegurando-se proteção às legítimas expectativas da contratação original, sendo vedadas as práticas abusivas, de acordo com o artigo 39 do Código de Defesa do Consumidor[2].

As práticas abusivas são condutas que causam um maior desequilíbrio existente entre o fornecedor e consumidor na relação consumerista e não podem, sob hipótese alguma, ser afastadas pela livre vontade das partes.

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Para DANIEL AMORIM ASSUMPÇÃO NEVES e FLÁVIO TARTUCE[3], as práticas abusivas encerradas pelo artigo 39 são assim conceituadas:

“Deve-se entender que constitui prática abusiva qualquer conduta ou ato em contradição com o próprio espírito da lei consumerista. Como bem leciona Ezequiel Morais, ‘prática abusiva, em termos gerais, é aquela que destoa dos padrões mercadológicos, dos usos e costumes (incs. II e IV, segunda parte, do art. 39 e art. 113 do CC/2002) e da razoável e boa conduta perante o consumidor’. Lembre-se de que, para a esfera consumerista, servem como parâmetros os conceitos que constam do art. 187 do CC/2002: o fim social e econômico, a boa-fé objetiva e os bons costumes, em diálogo das fontes. Há claro intuito de proibição, pelo que enuncia o caput do preceito do CDC, a saber: ‘É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas’. Na esteira do tópico anterior, a primeira consequência a ser retirada da vedação é a responsabilidade objetiva do fornecedor de produtos ou prestador de serviços. Além disso, deve-se compreender o art. 39 do CDC como em um diálogo de complementaridade em relação ao art. 51 da mesma norma. Deve haver, assim, um diálogo das fontes entre as normas da própria Lei Consumerista. Nesse contexto de conclusão, se uma das situações descritas pelo art. 51 como cláusulas abusivas ocorrer fora do âmbito contratual, presente estará uma prática abusiva. Por outra via, se uma das hipóteses descritas pelo art. 39 do CDC constituir o conteúdo de um contrato, presente uma cláusula abusiva. Em suma, as práticas abusivas também podem gerar a nulidade absoluta do ato correspondente”.

Dessa forma, são práticas abusivas as condutas dos fornecedores que desvirtuem os padrões de boa conduta nas relações de consumo, excedendo os limites da boa-fé.

Ademais, estatui o artigo 46 do Código de Defesa do Consumidor que “os contratos que regulam as relações de consumo não obrigarão os consumidores, se não lhes for dada a oportunidade de tomar conhecimento prévio de seu conteúdo, ou se os respectivos instrumentos forem redigidos de modo a dificultar a compreensão de seu sentido e alcance”. E o artigo 47 do Código de Defesa reza que “as cláusulas contratuais serão interpretadas de maneira mais favorável ao consumidor”.

Quando as cláusulas limitativas dos contratos não estiverem de acordo com o estabelecido pelo Código de Defesa do Consumidor, não só deverão ser interpretadas em favor do consumidor, mas, também, consideradas nulas de pleno direito por não obedecerem ao determinado pelas normas protetivas do consumidor e, por conseguinte, colocarem o consumidor em desvantagem excessiva. Não é demais lembrar que o artigo 51, IV, do Código de Defesa do Consumidor, determina a nulidade de pleno direito das cláusulas que “estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a equidade”.

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De fato, evidenciada está a abusividade, podendo causar prejuízos a elevado número de consumidores, quando não optaram por esse tipo de serviço ou tampouco forneceram correio eletrônico para o envio da fatura digital, a fim de possibilitar a análise da conta e relacionar o pagamento com o efetivo serviço prestado.

O acesso às faturas de consumo deve ser garantido a todos direta e indistintamente, não se admitindo a inversão da escolha da forma de envio, por presunção, sob pena de se impor maior dificuldade e barreiras à aquisição da fatura, notadamente àqueles que não tem internet, mais carentes, com mais idade ou menos conhecimento ou condição social, prevalecendo-se da fraqueza ou ignorância do consumidor (art. 39, IV, do CDC).

Vale ressaltar que o fornecimento de energia elétrica constitui prestação de serviço essencial, por expressa disposição legal (art. 10, inciso I, da Lei nº 7.783/89) e indispensável à vida, saúde e dignidade do cidadão, direito este fundamental, de ordem constitucional, e que sobreleva a quaisquer outros, sendo assegurado pelo artigo 1º, inciso III e 5º, caput, da CF. E eventual não impressão das contas e falta de pagamento pode gerar a interrupção do serviço, causando graves prejuízos aos consumidores, além de ofender o princípio da continuidade, adequação e eficiência de sua prestação.

Daí que estamos diante de transgressão às disposições basilares estabelecidas no diploma consumerista e na legislação regente, atentando-se ao devido tratamento diferenciado aos usuários vulneráveis.

Por derradeiro, não se justifica a ausência de serviço virtual de modificação de titularidade do consumidor apenas quando há débitos anteriores de terceiros, notadamente quando já se disponibiliza outros serviços digitais, até mesmo a transferência sem débitos, a caracterizar recusa a contratar com quem oferece pronto pagamento, violando tanto a boa-fé objetiva (artigo 422 do CC), quanto às disposições dos incisos V e IX do CDC, bem como a implicar maior ônus ao consumidor.

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[1] Curso de Direito do Consumidor, 2ª edição revista, atualizada e ampliada, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, pp. 128-129.

[2] Artigo 39 do CDC: É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas: V - exigir do consumidor vantagem manifestamente excessiva; IX - recusar a venda de bens ou a prestação de serviços, diretamente a quem se disponha a adquiri-los mediante pronto pagamento, ressalvados os casos de intermediação regulados em leis especiais.

[3] Manual de direito do consumidor: direito material e processual. 3ª edição. Rio de Janeiro: Editora Forense; São Paulo: Método, 2014, p. 276.

Este texto reflete a opinião do(a) autor(a). Esta série é uma parceria entre o blog do Fausto Macedo e o Movimento do Ministério Público Democrático (MPD). Os artigos têm publicação periódica

Convidado deste artigo

Foto do autor Maria Fátima Vaquero Ramalho Leyser
Maria Fátima Vaquero Ramalho Leysersaiba mais

Maria Fátima Vaquero Ramalho Leyser
Procuradora de Justiça / Ministério Público do Estado de São Paulo e associada do Movimento do Ministério Público Democrático - MPD. Foto: MPD/Divulgação
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Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Estadão.

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