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Opinião|Impeachment: reflexões no contexto do presidencialismo brasileiro (parte III)

convidado

Ao concluir a última parte da presente sequência temática sobre “impeachment”, que publiquei recentemente neste espaço, analisei as origens britânicas do instituto, apontando que, com a consolidação do sistema parlamentarista o impeachment caiu em desuso na Inglaterra, vindo, porém, a ser revigorado pelo direito constitucional norte-americano, já adaptado ao presidencialismo. Prossigo a partir dessa ideia.

Fernando Menezes de Almeida Foto: Inac/Divulgação

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O presidencialismo, tradicionalmente reconhecido como criação racional dos Estados Unidos da América, adaptando a lógica de um governo unipessoal ao anseio de eleições populares dos governantes – e é esse o modelo que em grande medida inspirará a República brasileira –, de plano acolheu a figura do impeachment.

Verifique-se o seguinte trecho da seção 3 do artigo I da Constituição Americana:

“The Senate shall have the sole Power to try all Impeachments. When sitting for that Purpose, they shall be on Oath or Affirmation. When the President of the United States is tried, the Chief Justice shall preside: And no Person shall be convicted without the Concurrence of two thirds of the Members present.

“Judgment in Cases of Impeachment shall not extend further than to removal from Office, and disqualification to hold and enjoy any Office of honor, Trust or Profit under the United States: but the Party convicted shall nevertheless be liable and subject to Indictment, Trial, Judgment and Punishment, according to Law”.

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Nota-se, pois, no caso americano, entre outros aspectos, que o Senado julga o presidente da República no processo de impeachment, tendo para tanto uma competência exclusiva – ainda que, como se passa no Brasil, nesse processo o Senado seja presidido pelo Chief Justice (ou seja, pelo presidente da Suprema Corte).

E que o julgamento do impeachment do presidente da República retira-lhe o cargo e afasta seu direito de ocupar outros, sem prejuízo de ainda poder vir a ser julgado, a partir dos mesmos fatos, perante a justiça comum, para outros fins de direito.

Entre o caso inglês e o caso americano, a França fornece um bom exemplo para comparação, igualmente tratando-se de país cujo direito e cuja cultura em geral muito influenciaram o Brasil.

Trata-se de um caso bem aprimorado de sistema misto entre os tipos clássicos de presidencialismo e parlamentarismo. Acompanhando Giovanni Sartori[1], pode-se designá-lo “semipresidenciasmo” – a ênfase no “presidencialismo” decorrendo de certa “maior consistência de cima para baixo do que da base parlamentar para cima”.

A França, em seu regime constitucional hoje vigente – Constituição de 1958 – soma a normal responsabilidade política do governo (chefiado pelo primeiro ministro) perante o parlamento (ver artigos 20 e seguintes, e em especial 49 e 50, da Constituição Francesa) à responsabilidade política do presidente da República que, no caso francês, tem evidente protagonismo mesmo na condução de assuntos de governo (ver artigos 5 e seguintes, e notadamente o artigo 16 – quanto a poderes de exceção –, da Constituição Francesa).

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Esse presidente francês – que é eleito pelo povo, que nomeia o primeiro ministro e os demais membros do governo e que preside o Conselho dos ministros – não está sujeito ao mesmo sistema de perda do cargo por moção de censura do parlamento, como está o primeiro ministro.

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No entanto, o presidente está sujeito a um procedimento que pode ser dito de impeachment – ainda que o texto constitucional e os doutrinadores não usem a palavra –, com nítido viés político no julgamento que enseja a perda de seu mandato. Veja-se o artigo 68 da Constituição Francesa:

“Le Président de la République ne peut être destitué qu’en cas de manquement à ses devoirs manifestement incompatible avec l’exercice de son mandat. La destitution est prononcée par le Parlement constitué en Haute Cour.

“La proposition de réunion de la Haute Cour adoptée par une des assemblées du Parlement est aussitôt transmise à l’autre qui se prononce dans les quinze jours.

“La Haute Cour est présidée par le Président de l’Assemblée nationale. Elle statue dans un délai d’un mois, à bulletins secrets, sur la destitution. Sa décision est d’effet immédiat.

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“Les décisions prises en application du présent article le sont à la majorité des deux tiers des membres composant l’assemblée concernée ou la Haute Cour. Toute délégation de vote est interdite. Seuls sont recensés les votes favorables à la proposition de réunion de la Haute Cour ou à la destitution.

“Une loi organique fixe les conditions d’application du présent article”.

Um primeiro elemento que se pode destacar do trecho acima citado, para indicar a natureza político do julgamento, é o caráter bastante aberto da descrição da conduta que leva à perda do mandato presidencial: “falta aos seus deveres manifestamente incompatível com o exercício de seu mandato”.

Comentando o dispositivo, Michel Verpeaux reforça essa leitura do caráter político do instituto[2]:

“Trata-se de dar a um órgão tão legítimo como o presidente da República, uma vez que também eleito por sufrágio universal, qual seja, o Parlamento reunido em Congresso, a possibilidade de considerar que o presidente da República não é mais digno de exercer as funções em respeito à Constituição”.

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E um segundo elemento, que pressupõe uma certa imersão em detalhes do direito constitucional francês, é a referência à noção de “Haute Cour” na qual se transforma o parlamento, com supressão da referência à expressão “justice”.

Mais uma vez, confira-se a análise de Michel Verpeaux[3] a respeito: “Para esse fim, e para sublinhar o caráter político dessa destituição, a ‘Haute Cour de Justice’ torna-se ‘Haute Cour’ para evitar qualquer referência jurisdicional”.

O assunto continuará nas próximas publicações.

[1] SARTORI, Giovanni. Engenharia constitucional (trad. Sérgio Bath). Brasília: UnB, 1996. p. 135.

[2] VERPEAUX, Michel. Droit constitutionnel français. Paris: PUF, 2013. p. 430 (tradução livre).

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[3] VERPEAUX, Michel. Droit constitutionnel français. Paris: PUF, 2013. p. 430 (tradução livre).

*Fernando Menezes de Almeida, professor titular da Faculdade de Direito da USP

Este texto reflete única e exclusivamente a opinião do(a) autor(a) e não representa a visão do Instituto Não Aceito Corrupção (Inac). Esta série é uma parceria entre o Blog do Fausto Macedo e o Instituto Não Aceito Corrupção. Os artigos têm publicação periódica

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