Em recente pesquisa realizada pelo Instituto Não Aceito Corrupção (INAC), através da coordenação da professora e pesquisadora Rita de Cássia Biason (UNESP), 54% dos brasileiros entrevistados afirmaram que já receberam oferta para vender seu voto por uma determinada quantidade de dinheiro ou outro tipo de barganha. De acordo com Biason, em entrevista ao podcast da UNESP, os recentes impactos da atual crise econômica ajudam a explicar o aumento da porcentagem de pessoas que receberam tal oferta, pois a carestia ampliou-se em determinadas regiões metropolitanas.
Paralelamente, os brasileiros, ainda nessa pesquisa, elencaram a corrupção como sua oitava maior preocupação, o que se diferencia da última pesquisa, realizada em 2022, quando a corrupção ocupava os primeiros lugares de preocupação dos cidadãos. Em síntese, a prática da corrupção cresceu, enquanto a percepção problemática desse elemento diminuiu.
Em 2024, novas eleições municipais renovarão essas práticas em todas as regiões do país. Embora os mecanismos de combate à corrupção estejam cada vez mais disponíveis para a população, bem como a Justiça Eleitoral, através de seus órgãos, tem investindo sistematicamente na vigilância de todo o processo, na mesma medida vem evoluindo os métodos para alcançar determinados fins. Como a proximidade com o poder público nos municípios é maior e a transmissão de dados passa por um grau de confiança maior, diversos tipos de negociatas que agora podem ser resolvidas longe dos holofotes, através de pagamentos via pix, por exemplo.
O grande número de pessoas que relataram tais práticas tem a ver com a maneira como o cidadão brasileiro legitima suas relações com o poder municipal. E essa cultura eleitoral possui suas raízes desde a formação de uma concepção institucional republicana. No clássico “Coronelismo, enxada e voto: o município e o regime representativo no Brasil”, o professor e ministro do Supremo Tribunal Federal (1960-1969) Victor Nunes Leal demonstrou como o decadente poder rural se adaptou às novas transformações institucionais na Primeira República e assumiu “uma troca de proveitos entre o poder público, progressivamente fortalecido, e a decadente influência social dos chefes locais, notadamente dos senhores de terras” (2012, p. 44).
Algo que Nunes Leal percebeu nas bases desse processo foi um paradoxo que fez com que o poder público se apropriasse desses mecanismos decadentes do coronelismo e produzisse uma cultura de relações políticas baseadas no mandonismo, filhotismo, falseamento do voto e desorganização dos serviços públicos locais. Embora em diversos centros metropolitanos contemporâneos a burocracia se impôs diante desses personalismos, diversos são os casos ainda latentes em diversos municípios de pequeno e médio porte no Brasil.
A título de comparação, Alexis de Tocqueville, ao analisar os costumes e práticas eleitorais dos americanos no século XIX, ressaltou a organização dos serviços públicos locais através do modo como os funcionários públicos se portavam e eram vistos pela população local. De acordo com o aristocrata francês, “os funcionários públicos, nos Estados Unidos, permanecem confundidos no meio da multidão dos cidadãos; não têm nem palácios, nem guardas, nem uniformes aparatosos. Essa simplicidade dos governantes não é produto apenas de uma feição particular do espírito americano, mas dos princípios fundamentais da sociedade” (2014, p. 238).
Ao voltarmos para as nossas práticas e costumes, percebemos por meio da pesquisa realizada pelo INAC a forma como a corrupção possui um sentido inverso àquele percebido por Tocqueville dois séculos atrás. Ao serem entrevistados a questionários estruturados em notas de 1 a 7, onde o grau máximo corresponde a uma aceitação maior de alguma prática corrupta, os brasileiros enquanto sociedade toleram os atos personalistas de corrupção como, por exemplo, o pagamento de propina para se livrar de uma multa de trânsito.
O distanciamento do poder público em relação a uma população ainda marginalizada de seus direitos e deveres produz uma permissividade nos eixos extremos da relação entre cidadão e instituições republicanas, seja na relação com a polícia, seja na conjuntura eleitoral, quando há uma maior aproximação entre o político e seu eleitor. O cotidiano da república, quando o cidadão participa, atua, presta contas e convive com seus funcionários públicos, permanece muito debilitado em nosso imaginário social. Prova disso é que cada vez mais novas lideranças ascendem ao teatro político criticando o funcionalismo público.
Surge a partir desse novo cenário uma nova forma de dependência política que não se coaduna com a cultura republicana clássica, pois cria uma espécie de messianismo empreendedor, quando o empresário se confunde com o político e trata o sistema como uma relação de vencedores e vencidos, algo que também não contribui para a dimensão do público enquanto cidadania social, política e cívica.
Este texto reflete única e exclusivamente a opinião do(a) autor(a) e não representa a visão do Instituto Não Aceito Corrupção (Inac). Esta série é uma parceria entre o Blog do Fausto Macedo e o Instituto Não Aceito Corrupção. Os artigos têm publicação periódica
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