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Opinião|O rascunho do decreto de estado de defesa e suas possíveis consequências no âmbito penal

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convidado

Uma das notícias mais comentadas nos últimos dias foi o rascunho de um decreto de estado de defesa apreendido na casa do ex-ministro da Justiça e Segurança Pública, Anderson Torres, e que Bolsonaro teria sido seu mentor, inclusive se reunindo com os chefes militares da época para colocar em prática suas cláusulas e aplicar um golpe de estado.

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No decreto constaria como sua finalidade o restabelecimento da ordem e da paz institucional, a ser aplicado no âmbito do Tribunal Superior Eleitoral, para apuração de suspeição, abuso de poder e medidas inconstitucionais e legais levadas a efeito pela Presidência e membros do Tribunal, verificados através de fatos ocorridos antes, durante e após o processo eleitoral presidencial de 2022.

Estado de defesa é uma das medidas de exceção previstas na Constituição Federal para preservar ou prontamente restabelecer, em locais restritos e determinados, a ordem pública ou a paz social ameaçadas por grave e iminente instabilidade institucional ou atingidas por calamidade pública de grandes proporções.

Para ser mantido em vigor, no prazo de 24 horas, deverá ser enviado ao Congresso Nacional e referendado no prazo de 10 dias pela maioria absoluta de seus membros.

O decreto deverá determinar o tempo de duração, as áreas abrangidas e, indicará diversas medidas que poderão ser adotadas, dentre as quais restrição ao direito de reunião, do sigilo da correspondência e das comunicações em geral. Perdurará por até 30 dias e poderá ser renovado uma vez, se persistirem os motivos de sua decretação (art. 136 da CF).

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Para que tenha validade jurídica, deverá ser assinado pelo Presidente da República e publicado no Diário Oficial da União.

Além do mais, antes de sua edição pela Presidência da República, deverão ser ouvidos o Conselho de Defesa Nacional e o Conselho da República, que apresentam parecer meramente opinativo e não vinculante.

Algumas considerações merecem ser feitas a esse respeito.

Em primeiro lugar, minuta de algum documento oficial, que sequer possui assinatura, não é considerado documento para fins legais.

O documento, para ter validade jurídica, deve ter a forma escrita, autor determinado, conter a manifestação de vontade ou a exposição de um fato e relevância jurídica. E, no caso de documento público, ser lavrado por funcionário público com atribuição para elaborá-lo.

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Com efeito, fácil perceber que um mero rascunho, sem assinatura da autoridade competente, não possui nenhuma relevância jurídica. É uma nada para o direito, já que pode se tratar de algo imaginado e até mesmo estudado, mas que não foi ou nunca seria colocado em prática.

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A fim de complementar meu raciocínio, lembro que em nosso país não se pune a mera cogitação, primeira fase do “iter criminis” (caminho do crime), que se compõe da cogitação, preparação, execução e consumação. Só a partir do início da execução é que haverá delito a punir, exceto quando houver expressa previsão legal para a punição de atos preparatórios, como ocorre com os crimes de induzimento à prática de crime (art. 286 do CP) e associação criminosa (art. 288 do CP), crimes estes que possuem elementares próprias.

Destarte, mesmo que alguém planeje a prática de um crime específico e pratique atos preparatórios, com ou sem parceiros, só haverá a punição se houver o início da execução dos elementos definidores do tipo penal. Assim, no crime de roubo, v.g., mesmo que os assaltantes planejem a execução do crime, adquiram equipamentos e se desloquem ao destino, se não ocorrer o início dos atos executórios do delito, com o ingresso na agência e ao menos o anúncio do assalto, com o emprego de grave ameaça ou violência contra pessoa, a conduta terá ficado nos atos preparatórios e não haverá crime.

Não se pune, portanto, o ajuste, a instigação, o induzimento e o auxílio, salvo disposição expressa em contrário, se não houver o início da execução do crime pelo autor (art. 31 do CP); do mesmo modo que, para a ocorrência da tentativa, é exigido o início da execução do crime (art. 14, II, do CP).

Por fim, a consumação ocorrerá com a presença de todos os elementos definidores do tipo legal (art. 14, I do CP).

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Dessa forma, mesmo que se idealize, comente e até mesmo planeje um golpe de estado, se a conduta ficar apenas nos atos preparatórios, não havendo o início de sua execução, e só a cogitação e a preparação, não haverá este delito e nem outro qualquer, exceto se os atos preparatórios forem crime por si mesmos, como quando se adquire armas ou explosivos de forma ilegal.

Lembro, por outro lado, que estado de defesa é uma medida prevista constitucionalmente e, para ter validade, necessita de referendo do Congresso Nacional, a fim de ser observado o sistema de freios e contrapesos para evitar atos arbitrários e abusos.

Evidente que não é possível a decretação de estado de defesa para alcançar o Tribunal Superior Eleitoral ou qualquer outro Tribunal, cuidando-se, se aplicada, de medida absolutamente inconstitucional por violar a separação e independência dos Poderes da República, princípio constitucional previsto no artigo 2º da Carta Magna.

Porém, como já dito, cuida-se de um mero rascunho que não pode ser considerado documento para fins legais, inclusive na seara penal.

Imaginar que aquela minuta fosse um plano para anular as eleições ou dar um golpe de estado beira ao absurdo. Basta sua mera leitura para se constatar que, dada à absurdez de suas cláusulas, que foi elaborado por quem não tem o menor conhecimento de direito.

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Pretender-se impedir o Judiciário de analisar sua validade ou de se criar comissão para julgar a regularidade e lisura do processo eleitoral, invadindo a competência do Tribunal Superior Eleitoral, cuida-se de medida absolutamente teratológica e inconstitucional.

Não é demais lembrar que o decreto teria de ser referendado pelo Congresso Nacional para que o estado de defesa continuasse em vigor, o que decerto não ocorreria e a probabilidade de instauração de processo de impeachment por crime de responsabilidade contra o Presidente da República seria praticamente certo.

Por tudo que foi exposto, nem de longe se pode concluir que houve tentativa de golpe de estado, pelo contrário, posto que a minuta nunca foi assinada e publicada no Diário Oficial, cuidando-se, no máximo, no caso de ter sido arquitetada e articulada pelo então Presidente Bolsonaro ou por alguém a ele ligado, de meros atos preparatórios, impuníveis no âmbito do direito penal.

Poder-se-ia imaginar que teria ocorrido crime de organização ou associação criminosa, que punem os atos preparatórios, sendo exceções de que o direito penal só atua a partir da execução do delito.

O delito de associação criminosa está previsto no artigo 288 do Código Penal, que dispõe:

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“Associarem-se três ou mais pessoas, para o fim específico de cometer crimes: Pena – reclusão de um a três anos”.

Associação, no caso, é a reunião de três ou mais pessoas. O objetivo da associação é a prática de crimes da mesma espécie ou não.

Do mesmo modo que ocorria com o crime de quadrilha ou bando, a associação deve ter a finalidade de cometimento de crimes de forma estável e permanente[1].

Permanência, no caso, não significa a perpetuidade da associação, mas que a reunião seja por tempo indeterminado, indefinido.

Para efeito de caracterização do delito, pouco importa se na associação existem inimputáveis ou desconhecidos. Faz-se necessário, apenas, que haja prova da existência de três ou mais pessoas (elemento objetivo do tipo).

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Não se exige, igualmente, que os componentes da associação se conheçam e a nítida divisão de funções e estatuto. Basta, apenas, que a associação vise à prática de um número incerto de crimes (elemento subjetivo do tipo).

Não desnatura o delito se alguns dos crimes forem cometidos por apenas duas pessoas, desde que a maioria deles tenha sido praticada por três ou mais indivíduos. Por outro lado, havendo constante modificação de comparsas, não haverá o crime, que exige estabilidade da associação.

Como o tipo penal pressupõe a existência de pelo menos três pessoas para a caracterização do crime, ocorrendo a absolvição de um deles, não subsiste o delito por falta de adequação típica.

O crime em apreço é de perigo abstrato e formal. Assim, não há necessidade do efetivo cometimento dos delitos para os quais houve a associação. Exige-se, apenas, que as pessoas se reúnam com esse propósito.

Por outro lado, não haverá o delito se o acordo for para cometimento de determinados crimes ou delitos momentâneos. Nesse caso, haverá concurso de agentes, pois presente o vínculo psicológico. Assim, há necessidade de vínculo permanente e estável para a prática de qualquer crime indefinidamente, excluindo-se as contravenções (exemplo: jogo do bicho).

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É crime autônomo em relação aos demais que forem praticados. Dessa forma, haverá concurso material entre o crime de associação criminosa e os que forem efetivamente cometidos.

Os crimes a serem praticados devem ser dolosos, ficando excluídos os culposos, cujo resultado é involuntário. Não há como pessoas se reunirem para causar resultados não pretendidos. Também não nos parece possível a formação de associação criminosa para a prática específica de crimes preterdolosos, cujo resultado agravador também é culposo. No entanto, os integrantes podem se reunir para cometer indefinidamente crimes de lesões corporais dolosas, por exemplo, e, se praticados, ocasionar em um ou mais deles resultado mais grave culposo. Como a reunião foi para a prática de lesões corporais dolosas, em que pode advir resultado mais grave culposo, não desnaturará o delito em apreço, que sequer exige a prática dos delitos para os quais houve a reunião de pessoas.

Referido delito estará consumado no momento que há a associação para a prática de crimes. A tentativa não é admissível, pois o crime é permanente e estão sendo punidos atos preparatórios, sem a necessidade de qualquer resultado (crime formal).

O parágrafo único do dispositivo traz uma causa de aumento de pena (até a metade) se houver o emprego de arma. A arma pode ser própria ou imprópria, já que o tipo é omisso quanto à sua natureza, simplesmente dizendo “... se a associação é armada”. Nesse caso, a associação criminosa apresenta maior periculosidade. No entanto, a causa de aumento de pena somente será aplicada se o componente da associação criminosa tiver conhecimento de que há pessoas que a integram portando ou empregando arma. Do contrário, não há como aplicar o aumento para quem sequer sabia que havia elementos armados na associação, sob pena de punição por responsabilidade penal objetiva.

E no que consiste essa tal de organização criminosa tão propalada e banalizada.

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A Lei 12.850, de 02.08.2013, trouxe para o nosso direito a definição de organização criminosa e dispôs sobre sua investigação criminal, infrações penais correlatas e o procedimento para seu julgamento.

Organização criminosa está definida como a associação de quatro ou mais pessoas estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a quatro anos, ou que sejam de caráter transnacional.

São, portanto, elementos constitutivos de uma organização criminosa: 1) associação de quatro ou mais pessoas; 2) estrutura ordenada; 3) divisão de tarefas, mesmo que informalmente; 4) objetivo de obtenção de vantagem de qualquer natureza; 5) prática de infrações penais com penas máximas superiores a quatro anos ou de caráter transnacional.

O crime de organização criminosa é tipificado no art. 2º da Lei 12.850/2013. Seu tipo fundamental é descrito como:

Promover, constituir, financiar ou integrar, pessoalmente ou por interposta pessoa, organização criminosa: Pena – reclusão, de 3 (três) a 8 (oito) anos, e multa, sem prejuízo das penas correspondentes às demais infrações penais praticadas”.

A primeira observação que faço é que para a existência deste grave delito há necessidade de que a reunião de quatro ou mais pessoas seja para a prática de infrações penais graves ou de caráter transnacional, ou seja, que ultrapassem nossas fronteiras. Não se presta para a caracterização deste delito infrações de pequeno ou médio potencial ofensivo, como delitos contra a honra, meras ameaças, induzimento ao crime e outros semelhantes, que dificilmente poderão levar alguém a ser preso.

Não se deve confundir o crime de associação criminosa (art. 288 do CP) com o de organização criminosa.

Enquanto na associação criminosa não se faz necessária a existência de chefia, hierarquia, divisão de tarefas e estrutura ordenada, esses requisitos são inerentes à definição de uma organização criminosa.

Não é elemento do tipo uma atuação meticulosamente organizada, pois a divisão de tarefas pode ser elaborada informalmente. Mas o mínimo de organização deve estar presente para diferenciá-la da associação criminosa.

Como já dito, na organização criminosa é exigido o número mínimo de quatro integrantes e as infrações penais que poderão ou deverão ser praticadas para a obtenção da vantagem perseguida devem ter penas máximas cominadas superiores a quatro anos ou serem de caráter transnacional, que são aquelas cometidas em mais de um país, ou que são cometidas em um só país, mas parte substancial da sua preparação, planejamento, direção e controle tenha lugar em outro país, ou que são cometidas em um só país, mas envolva a participação de grupo criminoso organizado que pratique atividades criminosas em mais de um país, ou, ainda, aquelas praticadas em um só país, mas que produzam efeitos substanciais em outro país.

Para que a organização criminosa obtenha, direta ou indiretamente, a vantagem de qualquer natureza para a qual foi criada, poderá ou terá de cometer infrações penais de qualquer ordem, como extorsão, corrupção, fraudes, todas graves.

Note-se que a norma tem como elemento infrações penais, que é genérico e engloba crime e contravenção penal, mas que deve ter pena máxima cominada superior a quatro anos.

Do mesmo modo que ocorre com a associação criminosa, a organização criminosa exige permanência e é crime autônomo em relação às infrações penais praticadas, não se exigindo, aliás, que elas sejam efetivamente cometidas por se tratar de delito formal.

Tal requisito é de suma importância. Não basta, assim, que pessoas se unam para cometer uma, duas, três ou mais infrações penais previamente estabelecidas para depois se afastarem. A união do grupo deve ser para o cometimento de indeterminado número de infrações penais de forma estável (com os mesmos integrantes ou grande parte deles) e permanente, que não significa perpetuidade, mas período não combinado para sua existência.

Com efeito, enquanto a associação criminosa tem o propósito de especificamente praticar delitos, sendo reunida para esse fim, a organização criminosa é organizada e estruturada com o objetivo de obter, diretamente ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante o cometimento de infrações penais. A vantagem a ser perseguida pode ser em negócio ou atividade lícita ou ilícita, e, para tanto, a organização criminosa deve estar disposta a cometer infrações penais de qualquer ordem. Porém, para que ocorra a adequação típica, essas infrações que poderão, ou não, ser cometidas, deverão ter pena máxima cominada superior a quatro anos ou serem de caráter transnacional.

Dessa forma, a organização criminosa poderá ser criada para, dentre outras finalidades, obter vantagens em licitações e contratos administrativos, exploração de jogos de azar e prostituição, tráfico de drogas e de armas.

Ocorrendo a prática de infrações penais pela organização criminosa, haverá concurso material e as penas serão somadas (art. 69 do CP).

A consumação ocorre com a promoção, constituição, financiamento ou participação na organização criminosa sem a necessidade de qualquer resultado (crime formal). Isto é, as pessoas podem se reunir com esse propósito e sequer cometerem crime, punindo a norma atos preparatórios, sendo exceção à regra de que somente se pune penalmente se houver o início da execução de um delito.

Não é possível a tentativa por se tratar de infração permanente e estarem sendo punidos atos preparatórios.

Portanto, havendo contato entre os integrantes do grupo e a mera tratativa para sua organização e estruturação, mesmo que nenhum crime autônomo seja cometido, o delito já estará consumado, pois a norma pune atos preparatórios.

Do mesmo modo que ocorre com a associação criminosa, haverá aumento de pena até a metade no caso de emprego de arma, só que de fogo por expressa determinação legal (art. 2º, § 2º, da Lei 12.850/2013).

Enfim, tanto para o crime de associação criminosa quanto para o de organização criminosa, há elementares próprias para sua caracterização, dentre elas a estabilidade e permanência do grupo ou associação, não bastando a reunião de pessoas para a prática de delitos momentâneos, mesmo que diversos, que constituirá concurso de agentes.

[1] Não existe diferença entre os termos estabilidade e permanência, comumente citado em julgados e pela doutrina quando da análise do crime de quadrilha ou bando. Ambos significam que a reunião seja por tempo indeterminado. Mesmo sendo usualmente empregados como sinônimos, cabe ao intérprete buscar o sentido exato para termos aparentemente semelhantes. Assim, permanência pressupõe o vínculo associativo por prazo indeterminado, ao passo que estabilidade implica manutenção da maioria dos integrantes do grupo. No entanto, no final das contas, permanência pressupõe a estabilidade da associação.

Convidado deste artigo

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César Dario Mariano da Silvasaiba mais

César Dario Mariano da Silva
Procurador de Justiça – MPSP. Mestre em Direito das Relações Sociais – PUC/SP. Especialista em Direito Penal – ESMP/SP. Professor e palestrante. Autor de diversas obras jurídicas, dentre elas: Comentários à Lei de Execução Penal, Manual de Direito Penal, Lei de Drogas Comentada, Estatuto do Desarmamento, Provas Ilícitas e Tutela Penal da Intimidade, publicadas pela Editora Juruá
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