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Opinião|O ‘sarrafo’ e a democracia no país do futuro

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convidado
Por José Eduardo Faria*

Ao afirmar que é preciso “subir o sarrafo de quem pode acionar o Supremo Tribunal Federal em ações diretas de inconstitucionalidade e em arguições de descumprimento de preceito fundamental”, parlamentares vinculados ao “centrão” e liderados pelo deputado Arthur Lira mais uma vez estão desconfirmando a antiga ideia de que o Brasil seria o país do futuro.

Praça dos Três Poderes, em Brasília Foto: Wilton Junior/Estadão

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Essa Iniciativa contém três objetivos flagrantemente antidemocráticos e imorais. Em primeiro lugar, retira um dos principais instrumentos processuais utilizado pelas agremiações partidárias pequenas, mas com forte consistência e coerência ideológicas, para tentar deter no Supremo o rolo compressor de maiorias representativas de interesses paroquiais, fisiológicos e religiosos. Em segundo lugar, a iniciativa esvazia parte do campo de ação da corte encarregada de promover o controle da constitucionalidade. Isso porque, ao deixar de ser acionada pelas pequenas bancadas ideológicas, ela fica impedida de defender valores contra-majoritários da sociedade brasileira. E, em terceiro lugar, ela abre caminho para o aumento da voracidade sofre recursos públicos por parte de maiorias parlamentares acidentais na Câmara dos Deputados e no Senado Federal. Como é sabido, esse foi um dos fatores que converteram o presidencialismo de coalisão numa combinatória entre farsa e bandalheira.

Um dos méritos da Constituição promulgada em 1988 foi, justamente, ter aumentado o acesso ao Supremo Tribunal Federal. Ela ampliou as funções do Ministério Público Federal - inclusive para além da esfera penal - e sua capacidade de provocar a atuação da corte em casos fundamentais para a preservação da democracia. Também permitiu a partidos, associações nacionais e entidades como a Ordem dos Advogados do Brasil proporem ações de controle da constitucionalidade. Concebidas para fortalecer o regime democrático após duas décadas de ditadura militar, essas medidas introduzidas pela Constituição tiveram enorme êxito.

Como prova disso, apenas nas duas primeiras décadas de vigência da Constituição foram protocoladas no Supremo mais de 4 mil ações diretas de inconstitucionalidade, aumentando com isso o campo de atuação e a visibilidade institucional da corte Suprema. Desde então, à medida que abusos cometidos pelo Executivo e pelo Legislativo passaram a ser contidos pelo STF, governantes e parlamentares banalizaram uma expressão para sintetizar seu descontentamento: ativismo judicial. Segundo eles, por atuarem em um Poder cujos membros não são eleitos pelo voto direto e pela regra de maioria, os ministros da corte estariam tomando decisões arbitrárias e voluntaristas, ameaçando a democracia.

Contudo, qual é democracia a que deputados e senadores se referem? Desde que no século passado foi constitucionalizada a premissa de que os Estados pobres das regiões Nordeste, Norte e Centro-Oeste do país deveriam ter o controle do processo político, para evitar o domínio absoluto do país pelos Estados mais ricos das regiões Sul e Sudeste, o que se tem é um regime político pervertido por distorções federativas. Os últimos número do IBGE apontam que, apesar de o Sul e o Sudeste terem 56,3% da população e 57% do eleitorado, as duas regiões detêm apenas 49,9% dos assentos na Câmara e 26% das vagas no Senado. Inversamente, embora o Norte, Nordeste e Centro-Oeste tenham 43,7% da população e 42,5% do eleitorado, as três regiões controlam 50,1% dos assentos na Câmara e 74% dos assentos no Senado.

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Essas distorções têm efeitos institucionais, políticos e econômicos corrosivos. Como a representatividade congressual é viciada, um desses efeitos é a tendência de prevalecimento de valores paroquiais, do mandonismo local e de oligarquias regionais nas pautas da Câmara e do Senado. Outro efeito é a má qualidade do processo legislativo, dificultando e até inviabilizando uma coordenação nacional com base em um projeto de Nação. Um terceiro efeito implica indefinição de responsabilidades, porosidade na diferenciação entre interesse público e interesses privados, decisões irracionais, duplicação de esforços, ineficiência administrativa e gastos perdulários.

O resultado é a resiliência do patrimonialismo na vida política brasileira. Isto porque, em decorrência das distorções federativas no Legislativo, em matéria de representação parlamentar, a máquina governamental tende a se converter num amontoado de feudos controlados por facções políticas dos Estados economicamente mais atrasados, todos empenhados em apropriar recursos públicos para suas respectivas clientelas. Por seu lado, o Executivo federal tende a se tornar um poder sem objetivos, prioridades e metas de médio e longo prazos.

José Eduardo Faria  Foto: Felipe Rau/Estadão

Nada do que estou apontando é novo. Há quase seis décadas, Celso Furtado, num belo ensaio apresentado no Royal Institute of International Affairs, em Londres, tratou dos gargalos do crescimento econômico brasileiro provocados pelas distorções federativas, em matéria de representação parlamentar. O controle das decisões legislativas de caráter nacional por grupos políticos locais e regionais e a subsequente dispersão de recursos são obstáculos a toda tentativa de racionalização da máquina administrativa nacional, uma vez que criam “um círculo vicioso pelo qual a feudalização do poder é a causa da ineficiência administrativa”, afirmou. Anos mais tarde, os sociólogos Simon Schwartzman, Sérgio Abranches e Jairo Nicolau também fizeram análises importantes sobre os problemas institucionais e as dificuldades de governabilidade resultantes da desigualdade na representação política entre os entes subnacionais da federação brasileira.

Além disso, o próprio Supremo já foi obrigado a tratar dessa questão em 1996, quando teve de julgar uma ação direta de inconstitucionalidade (Adin825-3-DF) proposta pelo governo do Rio Grande do Sul. O objeto da discussão tratava dos critérios de distribuição dos assentos na Câmara, que por um lado eram proporcionais à população, mas, por outro, estabeleciam um mínimo de 8 cadeiras para os Estados menores e um teto de 70 cadeiras para os Estados maiores. Segundo o chefe da Procuradoria Jurídica desse Estado, esse mínimo e esse teto viciavam a representação parlamentar, por conceder um sobrepoder aos estados do Acre, Roraima e Amapá e um subpoder aos estados de São Paulo, Paraná e Rio Grande do Sul. Esse desequilíbrio provocado pelo “favorecimento constitucional dos cidadãos das regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, em detrimento dos cidadãos da regiões Sul e Sudeste” em matéria de representação congressual, estava pondo em risco “a paz, a concórdia e a união dos brasileiros”, afirmava o procurador. Apesar de a ação não ter sido conhecida pela corte, ela alertou a cúpula do Judiciário para problemas institucionais da democracia brasileira, por envolver regras eleitorais distorcidas, excesso de fragmentação partidária e orçamento apropriado pelos Centrões do universo parlamentar.

Esse fato não deixa de ser paradoxal: o mesmo Supremo que em 1996 que não quis acatar aquela ação direta de inconstitucionalidade por excesso de formalismo jurídico, agora pode acabar sendo vítima de sua decisão. Caso a altura do “sarrafo” de quem tem direito de impetrar esse tipo de ação venha a ser aumentada pela turma desse personagem que parece egresso das novelas de Dias Gomes, o deputado Arthur Lira, ficará mais difícil para a corte receber novos processos em cujos julgamentos ela teria condições de zelar por uma democracia sem vícios de representatividade.

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*José Eduardo Faria, professor titular do Departamento de Filosofia do Direito e decano da Faculdade de Direito da USP

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