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O Supremo e o controverso crime de importação de medicamentos sem registro

No próximo dia 17, o Plenário do Supremo Tribunal Federal julgará a constitucionalidade do crime de importação de medicamentos sem registro, previsto no artigo 273, §1º-B, inciso I, do Código Penal, cuja pena é considerada uma das maiores incongruências presentes no direito criminal brasileiro

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Por André Ramos Rocha , Silva e Neiton Geraldo Gouvêa Júnior
Atualização:

André Ramos Rocha e Silva e Neiton Geraldo Gouvêa Júnior. FOTOS: ARQUIVO PESSOAL Foto: Estadão

Você se recorda da crise dos remédios de farinha da década de 1990? Os leitores mais jovens talvez nunca tenham ouvido falar, mas naquele período houve uma explosão de casos de falsificação de medicamentos, com ampla cobertura midiática. Os escândalos giravam em torno de pílulas contraceptivas e medicações de uso controlado que eram comercializadas sem conterem quaisquer princípios ativos. Inúmeras foram as pessoas enganadas e prejudicadas, algumas mortalmente[1], pelos placebos.

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Pressionado pela imensa repercussão social que tais casos vinham tomando, o Congresso Nacional aprovou a Lei nº 9.677 de 1998 que, no intuito de conferir tratamento mais severo a esses crimes, alterou a redação do artigo 273 do Código Penal e de outros dispositivos atinentes à saúde pública. A partir de então, quem falsificasse, corrompesse, adulterasse ou alterasse produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais praticaria crime hediondo sujeito à pena de 10 a 15 anos de reclusão. Para se ter uma ideia do quanto a legislação recrudesceu, a reprimenda anterior era de 2 a 6 anos para as condutas de falsificar, corromper e adulterar remédios e de 1 a 3 anos para a alteração da substância medicinal.

Além do aumento da sanção penal, a alteração legislativa ampliou o alcance normativo do dispositivo. Foi incluído o §1º-A, que acrescentou cosméticos e produtos de limpeza ao seu campo de proteção e o §1º-B, que equiparou às condutas anteriormente mencionadas quem importa, vende, expõe à venda, tem em depósito para vender ou, de qualquer forma, distribui ou entrega a consumo produto sem registro quando exigível ou adquiridos de estabelecimento sem licença, assim como outras especificidades técnicas requeridas pelos órgãos de vigilância.

Assim, infrações de cunho puramente administrativo, como a venda de medicamento ou produto de limpeza sem registro, foram transportadas ao Direito Penal, para serem sancionadas com pena mínima de 10 anos de prisão. Apenas a título de comparação, isso representa quase o dobro da reprimenda mínima conferida ao homicídio simples, que se inicia em 06 anos. O Congresso Nacional gerou, dessa forma, uma flagrante incongruência na lei penal.

Os integrantes do Poder Judiciário viram-se então diante de um grande impasse: como lidar com esse desequilíbrio punitivo? As mais variadas soluções surgiram na jurisprudência dos Tribunais. Até hoje, as consequências de quem responde a processo criminal pelas condutas do artigo 273, §1º-B, do Código Penal são incertas e dependem exclusivamente do local onde o crime ocorreu, posto que os julgadores de cada região do país tecem decisões completamente opostas.

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Magistrados mais legalistas fundamentam-se em uma absoluta separação dos poderes e aplicam integralmente a pena prevista em lei, argumentando que cabe ao Poder Judiciário apenas aplicar as sanções definidas pelo Poder Legislativo.

De outro giro, há aqueles que entendem pela possibilidade de absolvição com base no princípio da insignificância, pois medicamentos sem registro não necessariamente colocam a vida das pessoas em perigo. Por isso, deveria ser inicialmente analisada eventual nocividade do produto à saúde e, caso esta não esteja presente, absolver-se-ia o acusado em razão da incapacidade da sua conduta de representar um risco à saúde pública.

Para alguns, todo o artigo 273 seria inconstitucional. Para outros, apenas a desproporção de sua pena o seria. Aqui, surgem ainda mais ramificações. Se a pena é inconstitucional mas o crime em si não o é, muitas sanções são propostas para o seu lugar: a do delito de descaminho; do contrabando; a pena de 1 a 3 anos prevista no artigo 273 antes das alterações trazidas pela Lei nº 9.677 de 1998, naquilo que se chama "efeito repristinatório"; ou ainda, a sanção mínima de 5 anos prevista para o crime de tráfico de drogas.

Esta última interpretação permitiria, inclusive, a aplicação da minorante contida no artigo 33, §4º da Lei de Drogas, que pode gerar uma redução na pena de 1/6 a 2/3. A justificativa reside no fato de que o delito de tráfico de drogas também tutela a saúde pública, de sorte que um crime com efeitos notoriamente menos nefastos que os do tráfico não poderia ser punido com pena mais severa. O cenário é da mais completa insegurança jurídica, fruto do que acadêmicos de renome consideraram como "uma das maiores aberrações do Direito Penal brasileiro"[2].

É justamente para dar fim a essa enorme pluralidade de interpretações que, no próximo dia 17 de março, o STF se debruçará sobre a questão nos autos do RE nº 979.962/RS, de relatoria do Min. Luís Roberto Barroso, cuja repercussão geral foi reconhecida por unanimidade. O caso concreto envolve especificamente o artigo 273, §1º-B, inciso I, do Código Penal, que versa sobre a importação de medicamento sem registro, de tal forma que o Plenário da Corte deverá responder: (i) se a pena prevista para a importação de medicamento sem registro, na forma como está descrita pelo artigo supracitado viola os princípios da proporcionalidade e ofensividade; e (ii) se é possível a utilização de sanção prevista para outro tipo penal para a fixação da pena pela importação de medicamento sem registro.

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Analisando em um primeiro momento o questionamento (ii), a matéria de fundo parece envolver o nítido confronto entre dois princípios basilares do Direito Penal: o da reserva legal e o da proporcionalidade. É dizer, a regulação da quantidade de pena aplicada a cada crime é matéria estatuída necessariamente por lei, prerrogativa exclusiva do Poder Legislativo, ou caberia ao Judiciário uma certa margem interpretativa em casos de flagrante desproporcionalidade na legislação?

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No caso do artigo 273, §1º-B, inciso I, é bastante clara a violação ao princípio da proporcionalidade, sendo essa uma opinião praticamente unânime entre a doutrina penal[3]. Dessa forma, a discussão perpassaria pela possibilidade do Judiciário primar pela coerência do ordenamento jurídico ou de simplesmente deixar eventuais incoerências intocadas, considerando-as como uma opção do legislador e não como um equívoco a ser corrigido.

De fato, do ponto de vista jurídico-legal, parece insólito que o juiz possa condenar o réu por um crime e aplicar-lhe pena diversa daquela prevista em lei. O próprio STF já decidiu, no passado, pela impossibilidade de combinação parcial de leis, evitando-se a criação de uma lex tertia, por mais justos que sejam os motivos e ainda que se beneficie o acusado[4]. Porquanto, a tendência é que nossa Corte Constitucional siga raciocínio semelhante a esse precedente.

Contudo, parece-nos razoável que a discussão fique centrada no questionamento (i), de forma a trazer uma solução mais justa que prescindirá de eventuais malabarismos hermenêuticos: a declaração de inconstitucionalidade de todas as figuras equiparadas do §1º-B do artigo 273.  Estas, ao se afastarem por completo de princípios basilares do Direito Penal, como os da ofensividade, proporcionalidade e fragmentariedade, devem ser tratadas como meros ilícitos administrativos.

Uma coisa é certa: independentemente do caminho escolhido pela Suprema Corte, o Judiciário, enfim, terá uma orientação clara e definida acerca de um dos temas que mais têm dividido a jurisprudência penal nos últimos anos.

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*André Ramos Rocha e Silva, advogado no escritório Alamiro Velludo Salvador Netto Advogados Associados e bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (FD-USP)

*Neiton Geraldo Gouvêa Júnior, advogado no escritório Alamiro Velludo Salvador Netto Advogados Associados e bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FDRP-USP)

[1] EMPRESÁRIOS denunciados por falsificar Androcur. O Estado de São Paulo, São Paulo, 14 de mar. de 2001. Disponível em: . Acesso em: 11 de mar. de 2021.

[2] SILVEIRA, Renato de Mello Jorge; REALE JR., Miguel. In: REALE JR., Miguel (Coord.). Direito Penal: Jurisprudência em Debate. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 556.

[3] Cf.COSTA, Helena Regina Lobo da. In: REALE JR. Miguel (Coord.). Código Penal Comentado. São Paulo: Saraiva, 2017. pp. 810-819; BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: parte especial 4, 13ª edição, São Paulo: Saraiva, 2019, pp. 613 e ss.

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[4] STF- RE 600.817/MS, Rel. Min. Ricardo Lewandowski. Data de julgamento: 07/11/2013, Tribunal Pleno, Data de Publicação: 30/10/14.

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