As discussões sobre a necessidade de moderação em redes sociais têm aumentado consideravelmente devido a problemas como desinformação, discurso de ódio, falta de representatividade de grupos minoritários, presença crescente de crianças e adolescentes nos ambientes digitais etc. O debate envolve questões complexas que merecem ponderação, como a liberdade de expressão e os esforços despendidos para o combate aos vieses da inteligência artificial.
Em abril de 2023, o Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) editou sofregamente a Portaria nº 351/2023, visando o estabelecimento de medidas direcionadas a plataformas de redes sociais para prevenir a disseminação de conteúdos ilícitos, prejudiciais ou danosos, em especial aqueles referentes a extremismo violento que incentivam ataques a ambiente escolar ou fazem apologia e incitação a esses crimes ou aos perpetradores de tais crimes.
O ato administrativo é uma resposta simplória aos episódios de violência nas escolas brasileiras. O tema é inquestionavelmente urgente, no entanto, a solução apresentada pelo MJSP, do ponto de vista da discussão regulatória, é apressada.
A edição da Portaria atropela o debate que está em curso no Congresso Nacional no contexto do Projeto de Lei 2630/2020 - texto que, em teoria, pretende disciplinar a desinformação nos ambientes digitais, atualmente pendente de análise pela Câmara dos Deputados - trazendo um retorno permeado de lacunas. Indaga-se se as ferramentas escolhidas por meio da Portaria nº 351 são apropriadas e se as medidas estabelecidas são de fato eficazes para atender o propósito a que se destinam. Nesse tocante, a resposta é um retumbante "não".
A norma considera que as plataformas de redes social não são meras exibidoras do conteúdo publicado por terceiros, mas, sim, são responsáveis pela segurança na prestação dos seus serviços e devem responder pela influência que exercem no fluxo informacional.
Em linhas gerais, o texto prevê que a imposição de restrição do conteúdo classificado como prejudicial implica na necessidade de maior moderação e controle sobre o conteúdo disponibilizado pelos usuários dentro da plataforma. Assim, as redes deverão apresentar à fiscalização as medidas adotadas para limitar a distribuição de conteúdo nocivo, além de avaliar os riscos decorrentes do funcionamento dos seus serviços, incluindo os sistemas algorítmicos.
A atividade de intermediação de conteúdo caracteriza-se como fornecimento de serviços, justificando o amparo das disposições pelo Código de Defesa do Consumidor (CDC) e a atribuição da responsabilidade de fiscalização do dever de segurança das plataformas à Secretaria Nacional do Consumidor (SENACON).
O problema é que a moderação de conteúdo não é uma receita de bolo. A execução do poder fiscalizatório demandará aparatos adicionais à SENACON, tendo em vista que se trata do controle de atividade com particularidades complexas e especificidades técnicas distintas das relações de consumo tradicionais supervisionadas pelo órgão.
Para além disso, a redação do texto apresenta controvérsias que levantam questionamentos tanto acerca de sua legalidade, quanto de sua efetividade prática. Isto porque, apesar de o ato indicar a ''interpretação sistemática'' do Marco Civil da Internet (MCI - Lei nº 12.965/2014), suas disposições são contrárias à regulamentação, uma vez que o MCI estabelece que os provedores de aplicação de internet só serão responsabilizados por conteúdo infringente publicado por seus usuários em caso de descumprimento de ordem judicial determinando sua remoção (art. 19).
É inegável que o cenário atual em quase nada se assemelha ao ambiente digital no qual MCI foi concebido e, por vezes, suas previsões podem não atender às necessidades da nova era da comunicação. No entanto, as mudanças devem observar os instrumentos adequados.
Todo aluno iniciante em Direito Administrativo aprende que as Portarias detêm natureza jurídica de ato administrativo interno[1], não cabendo a sua utilização como fonte de direito, uma vez que não possuem o condão de inovar no ordenamento jurídico, tarefa esta que é reservada às leis. Assim, em hipótese alguma, podem criar direitos e obrigações, mas devem ser instituídas segundo as leis e com a finalidade de estabelecer diretrizes e ministrar esclarecimentos e orientações às autoridades públicas.
Na lição de José Cretella Júnior[2]: ''uma Portaria não inova, não cria, não extingue direitos, não modifica, por si, qualquer impositivo da ordem jurídica em vigor. Não dispõe contra legem, mas atua secundum legem. Interpreta o texto legal com fins executivos e desce a minúcias não explicitadas em lei''. Por essa razão, o conflito de normas levanta questionamentos acerca da legalidade e aplicabilidade das disposições da Portaria 351/23 que, evidentemente, extrapola os limites de sua função.
As disposições da norma, ademais, são precárias e carecem de definição específica. Conceitos relevantes como ''plataformas de redes sociais'' e ''conteúdo ilícito'' não são esclarecidos pelo texto. A utilização de conceitos abertos torna a norma subjetiva, o que pode levar as plataformas a adotarem abordagens excessivamente restritivas em suas políticas de moderação, resultando na remoção de conteúdos legítimos e impactando nos direitos individuais dos usuários.
No mesmo sentido, a portaria aborda a possibilidade de adoção de protocolos de crise pelas plataformas, sem entrar no mérito do que isso significa na prática. Acerca das sanções, limita-se à indicação de que será através de processo administrativo ou judicial, sem estabelecer o procedimento a ser seguido ou as penalidades cabíveis.
A falta de esclarecimentos sobre tais pontos, cumulada com a ausência de um órgão regulador que acompanhe o setor, pode suscitar a aplicação indistinta das medidas e sanções e em insegurança jurídica aos entes regulados. Sem diretrizes específicas, há espaço para interpretações díspares, medidas arbitrárias e tratamento desigual.
A preocupação se mostra ainda maior ao verificar-se que, apesar de a Portaria utilizar como medida de identificação de conteúdo prejudicial o amplo compartilhamento de dados entre as plataformas e as autoridades competentes e a criação de um banco de dados com conteúdo ilegal, não faz menção à Lei Geral de Proteção de Dados (Lei nº 13.709/18), não havendo indicação de necessidade de observância às disposições.
É evidente a necessidade de combater discursos violentos nos ambientes virtuais, sobretudo os capazes de ameaçar a segurança pública. Todavia, a norma parece ser uma solução simplista para um problema demasiadamente complexo. A determinação de medidas justificadas por um contexto específico sem considerar a proporcionalidade e os impactos futuros têm o potencial de instaurar uma vigilância excessiva sobre os usuários.
Isto sem mencionar a necessidade de analisar os atos administrativos sob a perspectiva consequencialista - adotada no perfil da nova Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Lei nº 4.657/42) - a qual determina o dever de os órgãos estimarem qual efeito prático e jurídico prepondera frente à realização de atividades voltadas à promoção de um determinado interesse público.
Os atos administrativos devem, portanto, ponderar quais serão seus reflexos jurídicos e fáticos, para que a sua atividade resulte em uma regulação responsiva e sem açodamentos. O interesse público a ser concretizado deve ser equilibrado com a aplicação de medidas proporcionais e com efeitos perenes, o que não foi observado na atuação do MJSP.
A fixação de medidas de moderação de conteúdo deve, preliminarmente, reconhecer a complexidade do tema e abrir espaço para o diálogo e a contribuição de todos os interessados. As atualizações e aprimoramentos legislativos, por sua vez, devem ser feitos por meio de instrumentos legais adequados, permitindo que as deliberações sejam construídas de maneira coerente e proporcional e em harmonia com os direitos fundamentais de liberdade de expressão e de proteção aos dados pessoais, mas não foi isso o que vimos até agora.
[1] Conforme definiu o doutrinador Hely Lopes Meirelles: ''são atos administrativos internos, pelos quais o chefe do Executivo (ou do Legislativo e do Judiciário, em funções administrativas), ou os chefes de órgãos, repartições ou serviços, expedem determinações gerais ou especiais a seus subordinados, ou nomeiam servidores para funções e cargos secundários. As Portarias, como os demais atos administrativos internos, não atingem nem obrigam aos particulares, pela manifesta razão de que os cidadãos não estão sujeitos ao poder hierárquico da Administração Pública''. MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 23. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1966.
[2] CRETELLA JÚNIOR, José. Tratado de Direito Administrativo. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1966.
*Daniel Becker, sócio das áreas de Resolução de Disputas e de Proteção de Dados no BBL | Becker Bruzzi Lameirão Advogados. Diretor de Novas Tecnologias no Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem (CBMA). Organizador dos livros O Advogado do Amanhã: Estudos em Homenagem ao professor Richard Susskind; O fim dos advogados? Estudos em homenagem ao professor Richard Susskind, vol. 2; Regulação 4.0, vol. I e II; Litigation 4.0; e Comentários à Lei Geral de Proteção de Dados, todos publicados pela Revista dos Tribunais
*Beatriz Haikal, sócia da área de Proteção de Dados e Regulatório de Novas Tecnologias no BBL | Becker Bruzzi Lameirão Advogados. Graduada em Direito pela PUC-Rio, pós-graduada em Estado e Sociedade pela Associação do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro (AMPERJ), Certified Information Privacy Manager (CIPM) pela International Association of Privacy Professionals (IAPP), IAPP Member, OneTrust Certified Privacy Professional, professora convidada de instituições como Ibmec, Curso Fórum e Faculdade CERS
*Anna Luiza Silva, advogada na área de Proteção de Dados e Regulatório de Novas Tecnologias no BBL | Becker Bruzzi Lameirão Advogados, membro consultivo da Comissão de Privacidade e Proteção de Dados da OAB/SC e Certified Privacy Professional pela OneTrust
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