Há dez anos, a Corregedoria Geral de Justiça de São Paulo criou o Projeto SEMEAR. Quis se valer da boa experiência colhida pelo Programa APAC – Associação de Proteção e Assistência Carcerária, instituído em São José dos Campos por Mário Ottoboni e doutrinariamente sustentada pelo inspirado e idealista Magistrado Ovídio Rocha Barros Sandoval, quando judicava em Barretos. A sigla também servia para o lema do grupo: Através do Preso alcançarás o Cristo.
A Igreja sempre contou com uma Pastoral Carcerária. Baseada na passagem evangélica “Estive na prisão e foste me ver” (Mateus, 25-36). Algo difícil de se realizar, numa sociedade que aprendeu a conviver com o “bandido bom é bandido morto”, que reclama redução da maioridade penal, que se indigna com a impunidade, quer mais tipos penais e sanções mais pesadas.
Raras vezes partiu do sistema Justiça algo em favor dos encarcerados e de suas famílias. Lembro-me do protagonismo de Manoel Pedro Pimentel, que presidira o TACRIM e disseminara a ideia das Casas do Albergado. Muito depois, Gilmar Mendes lançou, no STF, o “Começar de Novo”. São tentativas muito importantes. Pouca gente reflete sobre as origens da delinquência. Quando faltam família, escola e religião, os freios inibitórios se libertam. A sociedade consumista substitui a crença pela conquista material. Os mais vulneráveis mergulham nesta senda e o retorno à retidão é possível, mas muito difícil.
O Brasil é o terceiro maior encarcerador do planeta. O crime é fenômeno jovem: de 15 a 24 são praticadas as infrações. Construir mais prisões desserve ao objetivo de reduzir a delinquência. Ao contrário: por não conseguir cumprir o preceito constitucional de que o preso não perde sua dignidade, entrega-se às cada vez mais sofisticadas organizações criminosas o melhor de nossa juventude.
Por isso é de se celebrar o Projeto SEMEAR, que nasceu no maior Tribunal de Justiça do Brasil e, seguramente, o maior do mundo. Ele supre a insuficiência e, quando não, a incompetência do Poder Público, mais atento à ilusão de que prender resolve e se vale do voluntariado daqueles que têm percepção da condição humana. É preciso acreditar na regeneração, na recaptura de quem delinquiu, para que assuma o seu erro e se proponha integrar-se à sociedade, à qual feriu com o seu delito.
SEMEAR é um movimento essencialmente humano. Realizado por pessoas e destinado a pessoas. Seu sustentáculo é partir da concepção de que o crime é um desvio, uma anormalidade, que precisa ser tratada em todo o seu contexto e não apenas com a segregação do encarcerado. Um dia ele volta ao convívio. E se não estiver preparado? E se ninguém lhe estender as mãos? Estará perpetuamente condenado a viver na marginalidade?
A sociedade tem sua cota de responsabilidade em relação aos índices delinquenciais. Ao lado de causas desvinculadas do ambiente, convivem as miseráveis condições existenciais de vasta maioria da população. A desigualdade social, a exclusão, a invisibilidade, a falta de oportunidades é uma concausa do ingresso da mocidade no crime. Inegável isso. Quem lava as mãos, não se compadece daquele que errou, acredita que o problema é exclusivamente do governo, faz parte do problema e não da solução.
O SEMEAR contribui para o aprimoramento da gestão prisional. Procura dialogar com todos os seus partícipes. Motiva a comunidade local mas também toda a sociedade civil, para que essa chaga – quase meio milhão de encarcerados, em vários regimes – seja objeto da atenção de toda a nacionalidade.
O egresso merece acolhimento após purgar o seu pecado social junto ao presídio. Responsabilidade da lucidez, da consciência coletiva, mostrar que o princípio da dignidade, norteador de toda a nação brasileira a partir de 1988, também incide sobre o agente de um delito, sobre sua família, que é também vítima dessa insensatez.
SEMEIA é um projeto exitoso, que já está permitindo profícua colheita e que, a depender da conquista de mais corações abertos à senda da redenção humana, ainda produzirá resultados décuplos e cêntuplos.
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