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Vício oculto e vida útil no Código de Defesa do Consumidor: aspectos civis, penais e procedimentais

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Por Alexandre Langaro
Atualização:
Alexandre Langaro. Foto: ARQUIVO PESSOAL

  1. Publicado no dia 11 de setembro de 1990, o CDC -- Lei 8.078/1990, ou simplesmente Código do Consumidor, se se preferir -- tem mais de trinta anos.

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  1. O seu art. 118 assentou que:

Art. 118. Este código entrará em vigor dentro de cento e oitenta dias a contar de sua publicação.

  1. Apesar disso -- e talvez por isso --, fornecedores e consumidores travam embates diariamente; alguns desse embates acabam atraindo, concreta e especificamente, o campo especial do Direito Penal do Consumidor. Isso conforme destacado, por este autor, em diversos artigos e livros.[1] 

  1. Independentemente do produto -- e o conceito de produto é técnico, ou seja, produto é qualquer bem, móvel ou imóvel, material ou imaterial[2] -- os problemas surgem quando a garantia contratual do produto termina. [Um ano ou mais, por exemplo, dentre outros prazos].

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  1. Merece destaque o fato de que a defesa do consumidor é um direito fundamental; direito fundamental expressamente estabelecido na Constituição Federal. Nesse sentido:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

XXXII - o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor. 

  1. Daí a vinda à balha da Lei 8.078/1990 -- que 'dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências'.

  1. Na maioria dos casos conhecidos, contudo, surge a suposta aporia -- que, logo se dissolve, como demonstrar-se-á mais adiante -- do hipotético problema, subjetivo ou objetivo, conforme o ângulo sobre o qual se o estude, da relação do custo-benefício, para o exercício, à exaustão, pelo consumidor, dos direitos que lhe assistem legalmente. O consumidor, no ponto, tem de decidir e rapidamente -- quase sempre. Sob pena de perder tempo e dinheiro. Ver, no particular, dentre outras, a Teoria do Desvio Produtivo[3].

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  1. No campo jurídico, todavia, vale o conceito -- sobretudo o conceito legal, que, por certo, prevalece, sempre, sobre o valor do produto; o que vale por dizer que a mesma regra incide para todos os produtos -- ou seja, vale tanto para os produtos que custam R$ 1.000,00 como, e igualmente, para os de custo de R$ 1.000.000,00.

8.1.          Soma-se a isso, ademais, que é velha e aturada a jurisprudência do Supremo no sentido de que:

Onde o legislador não distingue, não cabe ao intérprete fazê-lo, muito menos para adotar óptica que acabe por prejudicar aquele a quem o preceito visa a proteger[4].

  1. É natural e lógico, contudo, que cada caso tem de ser analisado a partir de seus elementos concretos e das suas particularidades. Parte-se daí.

  1. O consumidor, no entanto, quase sempre perde, irrompendo, daí, danos emergentes, lucros cessantes e um longuíssimo etcétera.

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  1. Nessa vertente de ideias e argumentos, então, pretende-se remarcar alguns pontos fundamentais.
  2. Assim, por exemplo, aparecendo um vício oculto depois de encerrado o prazo de garantia, os fornecedores, como regra -- mas nem todos, é bom que se ressalve -- 'informam', ao consumidor, mediante esquiva e drible, que o reparo do produto custará um preço; preço a ser pago, é claro, pelo consumidor. Existem, ainda, entretanto, alguns fornecedores que, nessas hipóteses, dão um passo ainda mais larguíssimo: -- sem consultarem o consumidor e, ademais, à mingua, no ponto, do orçamento a que se refere o art. 40, CDC[5], consertam o produto e mandam a conta para o consumidor pagar.

  1. Ocorre, todavia, que, o prazo decadencial para o consumidor reclamar dos vícios ocultos inicia-se -- diz o art. 26, § 3°, CDC -- no momento em que ficar evidenciado o defeito.

13.1.      Mostrando-se, por isso mesmo, inteiramente irrelevante e absolutamente impertinente, no particular -- vale o registro --, o término do prazo da garantia.

  1. O preceito inscrito no art. 26, § 3°, CDC[6], portanto, no tocante ao vício oculto, ou defeito de fábrica, caso se prefira, adotou o critério da vida útil do bem -- e não o sistema da garantia!

14.1.      Vida útil do bem -- ou, melhor dizendo, prazo de vida útil em anos -- que, a propósito, consta destrinchado na Instrução Normativa RFB 1.700, de 14 de março de 2017[7], publicada no DOU do dia 16/03/2017, seção 1, pág. 23. Incidindo, no ponto, então, o CTN -- Código Tributário Nacional, para quem:

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Art. 100. São normas complementares das leis, dos tratados e das convenções internacionais e dos decretos:

I - os atos normativos expedidos pelas autoridades administrativas;

  1. Torna-se importante relembrar, porabsolutamente necessário, que, o Superior Tribunal de Justiça, no particular, tem assentado que:

O Código de Defesa do Consumidor, em seu art. 26, § 3º, ao tratar dos vícios ocultos, adotou o critério da vida útil do bem, e não o da garantia, podendo o fornecedor se responsabilizar pelo vício mesmo depois de expirada a garantia contratual. Precedentes.[8]

  1. Por isso, presente vício oculto, durante o prazo de vida útil do bem, abre-se ao consumidor a possibilidade, real, concreta e inexorável, de acionar a regra consubstanciada no art. 18, CDC:

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Art. 18. Os fornecedores de produtos de consumo duráveis ou não duráveis respondem solidariamente pelos vícios de qualidade ou quantidade que os tornem impróprios ou inadequados ao consumo a que se destinam ou lhes diminuam o valor, assim como por aqueles decorrentes da disparidade, com a indicações constantes do recipiente, da embalagem, rotulagem ou mensagem publicitária, respeitadas as variações decorrentes de sua natureza, podendo o consumidor exigir a substituição das partes viciadas.

§1° Não sendo o vício sanado no prazo máximo de trinta dias, pode o consumidor exigir, alternativamente e à sua escolha:

I - a substituição do produto por outro da mesma espécie, em perfeitas condições de uso;

II - a restituição imediata da quantia paga, monetariamente atualizada, sem prejuízo de eventuais perdas e danos;

III - o abatimento proporcional do preço.

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§2° Poderão as partes convencionar a redução ou ampliação do prazo previsto no parágrafo anterior, não podendo ser inferior a sete nem superior a cento e oitenta dias. Nos contratos de adesão, a cláusula de prazo deverá ser convencionada em separado, por meio de manifestação expressa do consumidor.

§3° O consumidor poderá fazer uso imediato das alternativas do § 1° deste artigo sempre que, em razão da extensão do vício, a substituição das partes viciadas puder comprometer a qualidade ou características do produto, diminuir-lhe o valor ou se tratar de produto essencial.

§4° Tendo o consumidor optado pela alternativa do inciso I do § 1° deste artigo, e não sendo possível a substituição do bem, poderá haver substituição por outro de espécie, marca ou modelo diversos, mediante complementação ou restituição de eventual diferença de preço, sem prejuízo do disposto nos incisos II e III do § 1° deste artigo.

§5° No caso de fornecimento de produtos in natura, será responsável perante o consumidor o fornecedor imediato, exceto quando identificado claramente seu produtor.

§6° São impróprios ao uso e consumo:

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I - os produtos cujos prazos de validade estejam vencidos;

II - os produtos deteriorados, alterados, adulterados, avariados, falsificados, corrompidos, fraudados, nocivos à vida ou à saúde, perigosos ou, ainda, aqueles em desacordo com as normas regulamentares de fabricação, distribuição ou apresentação;

III - os produtos que, por qualquer motivo, se revelem inadequados ao fim a que se destinam.

  1. Dado que, como advertia o Neokantista Rudolf Stammler [8] --jusfilósofo do direito alemão, da escola neocriticista de Baden:

Quem aplica um artigo do Código, aplica o Código todo.

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  1. O fornecedor, decerto, que olvidar os preceitos inscritos no art. 18 e 26, § 3°, CDC -- não se responsabilizando pelo vício, oculto do produto, durante o prazo de vida útil do produto --, omite, ao menos em tese, informação relevante sobre a característica, a qualidade, a segurança, o desempenho, a durabilidade e, sobretudo, relativamente, à garantia dos seus produtos e serviços, violando, assim, abertamente, o art. 66, CDC, que determina:

Art. 66. Fazer afirmação falsa ou enganosa, ou omitir informação relevante sobre a natureza, característica, qualidade, quantidade, segurança, desempenho, durabilidade, preço ou garantia de produtos ou serviços:

Pena - Detenção de três meses a um ano e multa.

§1º Incorrerá nas mesmas penas quem patrocinar a oferta.

§2º Se o crime é culposo;

Pena Detenção de um a seis meses ou multa.

  1. O CPP -- Código de Processo Penal --, revela que:

Art. 5º Nos crimes de ação pública o inquérito policial será iniciado:

II - o mediante requisição da autoridade judiciária ou do Ministério Público, ou a requerimento do ofendido ou de quem tiver qualidade para representá-lo.

Art. 27. Qualquer pessoa do povo poderá provocar a iniciativa do Ministério Público, nos casos em que caiba a ação pública, fornecendo-lhe, por escrito, informações sobre o fato e a autoria e indicando o tempo, o lugar e os elementos de convicção.

  1. A Lei 8.625/1993 -- que institui a Lei Orgânica Nacional do Ministério Público, dispõe sobre normas gerais para a organização do Ministério Público dos Estados e dá outras providências -- estabelece o seguinte:

Art. 26. No exercício de suas funções, o Ministério Público poderá:

IV - requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial e de inquérito policial militar, observado o disposto no art. 129, inciso VIII, da Constituição Federal, podendo acompanhá-los.

  1. No CDC e Código Penal -- CP --, respectivamente:

Art. 61. Constituem crimes contra as relações de consumo previstas neste código, sem prejuízo do disposto no Código Penal e leis especiais, as condutas tipificadas nos artigos seguintes.

Relação de causalidade

Art. 13 - O resultado, de que depende a existência do crime, somente é imputável a quem lhe deu causa. Considera-se causa a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido.

Art. 14 - Diz-se o crime:

Crime consumado

I - consumado, quando nele se reúnem todos os elementos de sua definição legal;

Art. 18 - Diz-se o crime:

Crime doloso 

I - doloso, quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo;

Crime culposo 

II - culposo, quando o agente deu causa ao resultado por imprudência, negligência ou imperícia.

Parágrafo único - Salvo os casos expressos em lei, ninguém pode ser punido por fato previsto como crime, senão quando o pratica dolosamente.

  1. Decerto, o consumidor pode -- e deve, presente a racionalidade emanada do postulado do Estado Democrático de Direito, fundado na cidadania e na dignidade da pessoa humana --, mediante o fornecimento de informações sobre fato e autoria, pedir ao Ministério Publico -- o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor[9] -- que requisite a instauração de inquérito policial para apurar os fatos, em ordem a, inclusivamente, identificar e individualizar a pessoa natural -- pertencente aos quadros da unidade negocial do fornecedor, consideradas, no particular, as respectivas cadeias diretivas, de comando e, no limite, de poder --, a ser responsabilizada criminalmente.

  1. Mostra-se forçoso concluir que o desatendimento, pelo fornecedor, dos artigos 18 e 26, § 3°, CDC, como demonstrado neste estudo, pode gerar responsabilidade civil, penal e administrativa. Daí irrompendo, certamente, o direito, emanado diretamente da Carta constitucional, que assiste ao consumidor, de ser defendido, extrajudicial e judicialmente e, sobretudo, indenizado-- cabalmente indenizado.

*Alexandre Langaro, advogado criminal, recursal, parecerista e palestrante. Autor de livros e artigos jurídicos. Articulista da Escola Superior de Advocacia da Ordem dos Advogados do Brasil -- Seção São Paulo. Professor da Escola Superior de Advocacia da Ordem dos Advogados do Brasil -- Seccional do Rio Grande do Sul. Estudou o NY Criminal Procedure Law em New York

[1][Alexandre Langaro, jornal o Estado de S. Paulo, https://www.estadao.com.br/politica/blog-do-fausto-macedo/direito-penal-do-consumidor/].

[Alexandre Langaro, 'Dogmática Penal por artigos', 2020, Kindle/Amazon, https://www.amazon.com.br/Dogm%C3%A1tica-Penal-artigos-Alexandre-Langaro-ebook/dp/B08BWSRV84/ref=sr_1_2?__mk_pt_BR=%C3%85M%C3%85%C5%BD].%C3%95%C3%91&keywords=ALEXANDRE+LANGARO&qid=1677953647&s=digital-text&sr=1-2&asin=B08BWSRV84&revisionId=f314bdb2&format=1&depth=1].

[2][Lei 8.078/1990

Art. 3° Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividade de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços.

§1° Produto é qualquer bem, móvel ou imóvel, material ou imaterial].

[3][https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/26062022-A-teoria-do-desvio-produtivo-inovacao-na-jurisprudencia-do-STJ-em-respeito-ao-tempo-do-consumidor.aspx].

[4][Agravo Regimental no Recurso Extraordinário 547.900/MG].

[5][Art. 40. O fornecedor de serviço será obrigado a entregar ao consumidor orçamento prévio discriminando o valor da mão-de-obra, dos materiais e equipamentos a serem empregados, as condições de pagamento, bem como as datas de início e término dos serviços.

§1º Salvo estipulação em contrário, o valor orçado terá validade pelo prazo de dez dias, contado de seu recebimento pelo consumidor.

§2° Uma vez aprovado pelo consumidor, o orçamento obriga os contraentes e somente pode ser alterado mediante livre negociação das partes.

§3° O consumidor não responde por quaisquer ônus ou acréscimos decorrentes da contratação de serviços de terceiros não previstos no orçamento prévio].

[6][Art. 26. O direito de reclamar pelos vícios aparentes ou de fácil constatação caduca em:

§3° Tratando-se de vício oculto, o prazo decadencial inicia-se no momento em que ficar evidenciado o defeito].

[7][http://normas.receita.fazenda.gov.br/sijut2consulta/link.action?idAto=81268#1706802].

[8][RESP 1.787.287/SP].

[9][Art. 5º, XXXII, CF].

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