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Cidades sem saneamento, asfalto e emprego gastam milhões em shows pagos com ‘emendas Pix’

Cachês de até R$ 800 mil são pagos a artistas com dinheiro enviado por deputados e senadores; prefeitos decidem o que fazer com valores sem transparência

Foto do author André Shalders
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Por André Shalders , Daniel Weterman , Julia Affonso e Vinícius Valfré
Atualização:

BRASÍLIA - Mesmo sem energia elétrica, saneamento básico, asfalto ou posto de saúde, pequenas cidades investiram milhões em shows de cantores, a maioria deles sertanejos, neste ano eleitoral. Deputados e senadores enviam os recursos diretamente para o caixa das prefeituras, que podem dar ao dinheiro o destino que bem entenderem, sem prestação de contas.

Localizada a 110 km de Maceió, a cidade de Mar Vermelho (AL) está entre os cem municípios de menor renda no País. Seus 3.474 habitantes enfrentam problemas, como falta de saneamento – presente em apenas 14,9% das casas –, ausência de pavimentação – só 24% das moradias estão em ruas com urbanização adequada – e de emprego (9,4% da população estava empregada em 2019). Ainda assim, o prefeito André Almeida (MDB) gastou R$ 370 mil com Luan Santana. É como se cada morador tivesse de desembolsar R$ 106 com o cachê. A apresentação será em agosto, a dois meses das eleições.

STJ suspendeu show que custou R$ 704 mil de cachê a Gusttavo Lima em pequena cidade da Bahia.  Foto: Felipe Martini/Globo/Divulgação

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Casos como esse proliferam pelo interior do País, onde inexistem políticas públicas. Levantamento do Estadão mostra gastos superiores a R$ 14,5 milhões com cachês de Gusttavo Lima, Zé Neto e Cristiano, Wesley Safadão, Luan Santana e Leonardo em 48 cidades. Os artistas foram contratados por prefeituras para fazer shows neste ano em municípios com menos de 50 mil habitantes.

A festança só foi possível com a ajuda de Brasília: as cidades que contrataram os shows receberam R$ 28,5 milhões em emendas parlamentares de uso livre. São as chamadas “emendas Pix”, também conhecidas como “cheque em branco”. O dinheiro cai direto na conta da prefeitura e nem mesmo os vereadores sabem ao certo quanto será gasto com os shows. Parte dos municípios nem sequer publicou os contratos. Dos 48 shows bancados com verba pública, o Estadão conseguiu rastrear os cachês em 35 deles.

Especialistas em contas públicas criticam a destinação do dinheiro. “É mais fácil desviar recursos por causa de um show do que por causa de uma obra. Uma obra pode ser aferida. Num show, é tudo muito relativo, o que é mais um motivo para essa profusão”, afirmou Gil Castello Branco, da Contas Abertas. “Esse é um sintoma claro da captura do Orçamento por interesses menores em que o dinheiro é desperdiçado com gastos de baixa eficiência, baixa qualidade e questionável prioridade”, disse Marcos Mendes, do Insper.

Os recursos que vão patrocinar o show de Luan Santana em Mar Vermelho foram enviados pelo senador Renan Calheiros e pelo deputado Isnaldo Bulhões, ambos do MDB alagoano. Ao fazer a emenda, o parlamentar não determina qual será o destino do dinheiro. Trata-se de uma decisão que cabe ao prefeito.

É evidente que tem um caráter eleitoreiro. As pessoas ficam muito gratas ao prefeito ou ao parlamentar que colocou a emenda porque o cidadão atribui a esses políticos a gratuidade do show, que não é gratuito. (...) É mais fácil desviar recursos por causa de um show do que por causa de uma obra. Uma obra pode ser aferida. Num show, é tudo muito relativo (...)”

Gil Castello Branco, diretor executivo da Contas Abertas

Renan disse que costuma apoiar o Festival de Inverno da cidade, mas afirmou ser contra a contratação de artistas a preços exorbitantes. “Eles pedem todo ano uma participação para este festival. Mas não fizemos isso para (a prefeitura) contratar (artistas) com esses honorários que estão sendo denunciados, não. Sou contra”, declarou o senador. Bulhões, por sua vez, ressalvou que a emenda foi para a cidade, não para custear show.

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Embaixador

Em São Luiz (RR), com 8.232 habitantes, a prefeitura aceitou pagar R$ 800 mil por um show de Gusttavo Lima em dezembro. Dados do IBGE indicam que menos da metade da população tem tratamento de esgoto adequado e apenas 17% das vias públicas estão urbanizadas. Na contratação, sob investigação do Ministério Público, a prefeitura argumentou que se tratava de “show musical do artista de notável reconhecimento”.

Esse é um sintoma claro da captura do Orçamento por interesses menores em que o dinheiro é desperdiçado com gastos de baixa eficiência, baixa qualidade e questionável prioridade (...) É uma questão de primeira ordem que precisa ser revista no âmbito de uma reforma do processo orçamentário.”

Marcos Mendes, pesquisador do Insper

O Estadão revelou, na quarta-feira, o caso de Teolândia (BA), que contratou Gusttavo Lima por R$ 704 mil enquanto a população ainda enfrenta os efeitos das chuvas que atingiram a região, com estradas em estado precário e pontes destruídas. O cantor foi escolhido porque a prefeita Maria Santana (Progressistas) disse que “sonhava” conhecê-lo. Neste domingo, 5, o presidente do Superior Tribunal de Justiça, Humberto Martins, mandou cancelar de vez a Festa da Banana, a poucas horas da apresentação. “Como é difícil a gente sonhar e não poder realizar o sonho da gente”, lamentou a prefeita ao anunciar no palco a decisão.

Teolândia, na Bahia, ainda enfrenta consequências das chuvas. Veículos apresentam dificuldades para circular nas estradas locais. Foto: Foto: Divulgação

Sem justificativa

Diante da falta de normas para o uso do dinheiro, prefeitos escolhem os artistas sem qualquer justificativa plausível. A prefeitura de Areia Branca (SE) aceitou pagar R$ 550 mil a Wesley Safadão para uma festa que vai superar R$ 1,5 milhão em gastos com cachês. Em documento oficial, a cidade usou uma frase do professor Jorge Ulisses Jacoby Fernandes, autor do livro Contratação Direta Sem Licitação, copiada também em outros contratos semelhantes: “Todo profissional é singular, posto que esse atributo é próprio da natureza humana”.

Os prefeitos não são donos do dinheiro, eles são administradores. A prefeita não está ali para realizar sonhos dela, mas para fazer acontecer as prioridades do município que ela administra.”

Leandro Consentino, cientista político do Insper

Além dos cachês, há uma ampla estrutura de palco, sonorização e equipes de segurança custeadas pelos cofres públicos. Em Santa Terezinha do Itaipu (PR), com 23 mil habitantes, a festa teve Gusttavo Lima, por R$ 850 mil. A prefeitura gastou ao menos R$ 2,2 milhões com as demais atrações e estrutura.

Cantor Leonardo é contratado, sem licitação, para show na cidade de Nhandeara (SP), no valor de R$ 290 mil. Foto: Reprodução Foto: Reprodução

Sem transparência

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Em vários shows não é possível saber de quanto será o cachê. É o caso de Conceição do Jacuípe (BA), com 33,6 mil habitantes, onde 20% dos moradores não têm asfalto na frente de suas casas. Mesmo assim, a prefeitura contratou o cantor Wesley Safadão para a festa junina. Por quanto? O vereador Edinaldo Puridade (sem partido) disse que só conseguirá saber depois do pagamento efetuado.

Outra cidade baiana que contratou um show de Luan Santana, mas não divulgou o cachê, foi Itiruçu, com 12 mil habitantes. Por lá, os vereadores inovaram e aprovaram projeto autorizando a prefeitura a contratar sem aval do Legislativo. No Portal da Transparência, não há uma única informação do show. Procurados, os artistas mencionados não retornaram aos contatos da reportagem.

O mais irônico é que isso tenha vindo à tona no contexto de críticas à Lei Rouanet, uma política pública que funciona, que tem regras, feitas por pessoas que se beneficiam de cachês milionários pagos com dispensa de licitação para eventos claramente eleitoreiros.”

Leandro Machado, cientista político e mestre em Administração Pública