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Correspondências entre Ruy Mesquita e Gilles Lapouge mostram debate no ‘Estadão’ sobre golpe de 64

Sob o título geral ‘Duas visões autênticas sobre a revolução’, telegramas entre diretor do jornal e correspondente em Paris foram publicado no jornal em 21/6/1964

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Por Redação

Em junho de 1964, em meio aos debate sobre o golpe militar, à época chamado de “revolução”, o jornalista Ruy Mesquita, então diretor do Estadão, escreveu ao correspondente do jornal em Paris, Gilles Lapouge, sobre sua esperança de que o presidente Humberto Castelo Branco, escolhido para comandar o país após o movimento de 31 de março, mantivesse o calendário eleitoral que previa a ida às urnas em 1965, encerrando brevemente o período de tutela dos militares.

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Os dois textos foram publicados no Estadão na edição de 21 de junho de 1964, iniciando em sua página 140 e espraiando-se por outras, e depois reproduzidos no livro “31/3 - Ruy Mesquita e Gilles Lapouge”, de 50 páginas, com os argumentos a favor e contra o movimento.

A troca de correspondências se deu após Ruy Mesquita enviar um telegrama a Lapouge explicando por qual motivo tinha vetado a publicação de um artigo sobre a cobertura de uma entrevista dada por Carlos Lacerda na França, quando o então governador da Guanabara defendeu o golpe.

Cartas de Ruy Mesquita e Gilles Lapouge com debate sobre o golpe de 64 foram publicadas no Estadão em 21 de junho de 1964 Foto: Acervo/Estadão

Lapouge respondeu ao telegrama e a troca de correspondências apresentadas no Estadão naquela data como “Duas visões autênticas da Revolução” pode ser lida na transcrição abaixo:

A luta exige meios puros

Uma carta de Gilles Lapouge

“Meu caro Ruy, seu telegrama comoveu-me e perturbou-me ao mesmo tempo. Não me surpreendi: já sabia que suas decisões são sempre tomadas com base nos mais nobres motivos.

Minha opinião sobre a revolução brasileira é menos radical do que imagina. Em todo caso, ainda não está definida. Só o fato de você e sua família apoiarem esse movimento suspenderia meu julgamento, obrigando-me a fazer perguntas a mim próprio até o cansaço. Aliás, se eu considerasse fascista o regime atual (mas nesse caso o “Estado” não o apoiaria) minha atitude seria diversa.

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Entretanto, só aceito esse regime com sérias reservas. Seus objetivos e seus meios não me parecem claros. Não me refiro à forma. Seria ridículo tomar as coisas ao pé da letra em situações extremas e a do Brasil era-o, sem dúvida. Portanto, não é o golpe de força que mais me impressiona. Aliás, preocupa-me mais a invalidação dos deputados da oposição, o silêncio que acolheu essa violação. O próprio De Gaulle, em 1958, não teria adotado procedimentos desse tipo. Acima de tudo, as detenções elevam ao máximo minha inquietação: veja, através do tempo e do espaço, é uma fatalidade que ocorre em todos os regimes em que a justiça já não reina. Chocam-se, cedo ou tarde, com os estudantes e com os intelectuais. Na Hungria, o círculo Petöfi ousou desafiar os russos. Na França, nos dias mais penosos da guerra colonial, os estudantes e os professores – enquanto os operários, contidos pelo partido comunista, calavam-se – os intelectuais, portanto, fizeram renascer a coragem e a esperança. Ora, a Universidade brasileira é perseguida, alguns de seus melhores espíritos são aprisionados, outros privados de seus direitos, os estudantes vigiados, os livros – principalmente os livros – são objetos de fiscalização. Atacar o espírito, em minha opinião, hoje como ontem, é o pecado realmente capital e que anuncia conclusões fatais.

Você pode oferecer-me como contra-argumento o comunismo – e admito o perigo, principalmente para um País de desenvolvimento irregular como o Brasil, ao qual até mesmo esse luxo é proibido. Mas, a luta contra o comunismo autoriza o emprego de qualquer método? Se a vitória depende da instituição de um regime policial, se os estudantes devem ser detidos e o espírito amordaçado, então não teria o comunismo obtido a vitória, impondo ao adversário a necessidade de usar, como por contaminação, seu semblante de medusa? Franco também combatia o comunismo. Sei que o Brasil, graças a Deus, não tem essa fisionomia. Mas gostaria de convencer-me de que todos os brasileiros que chegaram ao poder sabem que a luta contra o comunismo, por ser mais dura que qualquer outra, exige maior rigor, maior pureza na escolha dos meios, que outro combate qualquer.

Ora, verifico que a obsessão anticomunifsta realizou devastações extremas. Dia após dia leio o “Estado” e em vão procuro uma voz discordante, uma restrição às iniciativas do poder. Em vão. Ouço apenas uma aprovação generalizada. Um jornal cujos princípios sempre foram os da coragem e da firmeza, da lucidez, jamais hesitando ao ter de desagradar, de chocar se necessário, seus próprios amigos, teria sido vítima de um sortilégio, teria sido atingido por alguma hipnose, para que, de súbito, tudo o que emana do poder seja antecipadamente aprovado e tido como salutar?

Certamente vocês lutam numa posição difícil e no combate nem sempre se podem escolher as amizades - somos às vezes obrigados a calar temporariamente o que poderia debilitar nosso partido. Todavia, tomo Lacerda como exemplo. Ele concedeu uma entrevista à imprensa em Orly que não consigo acreditar tenha sido aprovada por vocês: a irritação que o animava, a franqueza de sua argumentação, a vulgaridade de certas expressões, sua inaptidão, enfim, eram inegáveis. No momento em que o Brasil precisava – pelo menos era o que afirmava ele – fazer com que o mundo, a Europa e a França compreendessem a pureza, a verdade de seus objetivos, uma entrevista daquela espécie teve efeito contraproducente. Consternou todos os que na França (eu inclusive) defendem a causa do Brasil. Ora, o “Estado”, em lugar de exprimir reservas, muito ao contrário, elevou às nuvens o texto de Lacerda. Parece-me um erro. Num tal caso, a verdadeira solidariedade entre o “Estado” e Lacerda teria sido, ao contrário, adverti-lo de que escolhera um mau caminho. Você poderá dizer-me que me engano e que as declarações feitas por Lacerda em Orly eram necessárias? Nesse caso, por que razão foi preciso que o próprio Lacerda as desmentisse um mês mais tarde, invocando a desculpa da fadiga? Admitindo, assim, que suas declarações foram inoportunas.

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Insisto nesse ponto, pois parece-me essencial. Creio que o grande perigo se revela no dia em que o julgamento, a lucidez, são postos de lado e substituídos pela paixão. Tenho lido o “Estado” diariamente. Procurei um protesto contra as prisões de estudantes. Encontrei apenas a carta de Duarte. É uma bela carta, mas embora admire o “Estado” por tê-la publicado, não tive a impressão de que o jornal tenha retomado por sua conta as posições que sempre adotou em favor da liberdade de consciência e da cultura.

Peço-lhe que não se equivoque, Goulart e seu grupo jamais despertaram minha simpatia, estima ou interesse. Considerei-o sempre um homem perigoso e medíocre, isento de toda honestidade, um ambicioso e um homem sem valor. Nesse ponto, discordo da imprensa francesa, e não lamento de forma alguma. Além disso, sei, como vocês, que sua expulsão era a condição preliminar para qualquer reforma. Porém, confesso-lhe que o grupo que o substituiu não me inspira muito. Inclui, evidentemente, pessoas honestas, competentes e firmes. Ao lado destas, porém, que inquietante agregação. É inútil citar nomes que você já conhece: o próprio “Estado”, nestes últimos dez anos, ensinou-me a conhecer esses homens. Na verdade, encontra-se no poder a classe dominadora, a mesma eterna classe que, sob travestis sucessivos - e a existência de duas oligarquias, uma disfarçada sob a máscara da direita e a outra sob a da esquerda, nada quer dizer – a mesma classe que sempre dominou e que sempre se mostrou surda à voz dos “ofendidos e dos humilhados”. Nunca me poderão convencer de que os Adhemar de Barros e os Chateaubriands se alistaram na cruzada de Deus e da Família por que a imagem dos pobres, espoliados por Goulart, não os deixava dormir. Da parte deles, é uma mentira e uma vilania. Da parte dos outros, péssimas alianças (Deus, a família, sem dúvida - sentir-me-ia mais tranquilo com “a ordem e o progresso” ou com “a liberdade, a igualdade e a fraternidade”).

Sei que entre os que triunfaram muitos pensam na miséria do Brasil, em sua alienação. Mas a classe dos dominantes que hoje, como ontem, reina no País, por sua própria natureza e visceralmente, não pode efetuar a revolução drástica que se impõe. As noites de 4 de agosto são magníficas nas histórias da França. Mas não são os efeitos da bela alma dos dominantes. É preciso que a necessidade seja premente ou que alguns desses dominantes ajudem os outros a ouvir os lamentos de angústia. Era o papel que, dentro de mim, destinara ao “Estado”.

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Na verdade, se tivesse a impressão de que os homens de hoje são capazes de salvar o Brasil de sua miséria, os escrúpulos de forma pouco peso teriam. Porém, nada no passado desses homens, nada em sua conduta nestes dois meses, me indica que o saibam fazer. Se, de fato, tenho minhas reservas com relação a Lacerda, é porque sua arrogância, sua violência agressiva, seu orgulho, não o aproximam de meu coração. E principalmente porque está ligado a elementos que absolutamente não confio para realizar a verdadeira revolução de que o Brasil necessita.

Exponho hipóteses, temores, mais que certezas. Alguns indícios me animam e, em primeiro lugar, uma confiança natural que tenho nos brasileiros, um dos raros povos inimigos da violência e sempre compreendendo e respeitando a liberdade de outrem. Mas, o povo é uma coisa; os dirigentes, às vezes, são outra. Por outro lado, verifico que o “Estado” não acusa esse regime. Da distância em que me encontro, não disponho, em suma, de outros refletores para distinguir as figuras desse teatro de sombras e gostaria de não precisar de outros focos de luz. Todo seu passado, tudo o que sei a seu respeito, levam-me a ter confiança até o momento em que vocês derem o sinal de alarme.

Peço desculpas por ter escrito tão longamente e por responder inabilmente às suas palavras. Repito: embora, há dois meses, tenha dúvidas sobre muitas coisas, jamais tive sobre você ou os seus. Mas os espíritos mais firmes estão sempre rodeados de perigos. A embriaguez da ação, a adulação de alguns, a covardia de outros, ameaçam afrouxar o rigor de julgamentos. Você cita Malraux e Koestler e no momento em que neles encontrava as linhas fundamentais de sua ação, eu os lia sob o mesmo aspecto. Não estou certo de que hoje continuem fiéis à imagem que deles formara. O primeiro caiu na adoração de uma alta figura e, desde esse dia, um dos maiores espíritos dessa época viu-se paralisado, suprimido. O segundo, sufocado por um anticomunismo sistemático, já não tem a meus olhos as dimensões de outrora.

Que esta carta – e a franqueza com que me exprimo – seja para você o penhor da minha amizade e de minha estima. Suponho que a seu redor poucas vozes se elevam para contestar – pelo menos é a impressão que tenho pela leitura do jornal. Veja; compreendo muito bem que você não tenha publicado meu artigo sobre Lacerda. Afinal, trata-se de um problema brasileiro e nada tenho a ver com isso (mas talvez seja algo que paira acima das nações e sinto-me um depositário mais puro do Brasil que um Adhemar, assim como reconheço que você tem mais direitos sobre a França que muitos franceses). Portanto, concebo que você não tenha publicado meu artigo sobre Lacerda, mas ser-me-ia mais difícil compreender que uma linha estreita e rígida guiasse, de agora em diante, todos os espíritos. Na ocasião em que o Combat era o jornal de Albert Camus (creio que você morava em Paris nessa época, foi a honra da imprensa francesa por que aceitou que a nitidez de sua linha política coabitasse com as distintas consciências de seus redatores. Sempre tive a impressão de que o “Estado” aproximava-se desse espírito. Durante cinco anos, o “Express”, cujo anti-degaulistas era famoso, publicou artigos de Mauriac e de Jean Dariel, ambos apaixonados degaulistas. Dessa forma, em minha opinião, o “Express”, além das categorias degaulista ou anti-degaulista, defendia outro partido – o da liberdade. Isto é, o da vida e do respeito que ela merece. De resto, mesmo num plano prático, o “Express” ganhava com isso força e eficiência: sua palavra era tanto mais respeitada na medida em que se sabia que também respeitava a dos outros.

Se hoje desejo alguma coisa, é o seguinte, de muito longe, e no mais humilde tom, gostaria de ser a voz que, acima de algumas divergências, pudesse talvez despertar em vocês uma outra voz: a de nossas juventudes semelhantes, a que ouvimos juntos antes de nos conhecermos nos patéticos apelos de Malraux, na piedade de Silone ou nas apocalipses da guerra da Espanha. Compreenda-me bem: sei que vocês nada negaram, e jamais negarão, do que foram. Mas sei também que a areia dos anos entorpece as memórias, acumulando-se insensivelmente sobre os corações, as energias e os olhares. Eu próprio o sinto e sou sempre grato a quem me desafia para despertar incessantemente o adormecimento do espírito. Assim li seu telegrama e assim gostaria que você lesse esta carta. Você julga que não me foi possível escapar à atmosfera predominante na imprensa francesa e pergunto-me se seria verdade e, talvez de fato, o seja. Ao mesmo tempo, faço-lhe a mesma pergunta e se não teria estabelecido a seu redor, na cumplicidade, na avaliação, e na adulação, um outro contágio?Decididamente, quando se trata do Brasil, nunca consigo moderar meu interesse. É este o motivo desta longa carta. Gostaria que você a interpretasse como um sinal de amizade, como o agradecimento pela amizade que você me oferece. Abraço de seu amigo.

Gilles Lapouge”

A praxis revolucionária deve começar por erradicar a praxis anti-revolucionária

Uma reposta de Ruy Mesquita

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“Meu caro Lapouge: foi com grande satisfação que recebi sua carta, resposta ao meu telegrama que, entre outros objetivos, tinha exatamente esse de me proporcionar um diálogo com um amigo lúcido e inteligente, e, sobretudo, honesto na proposição de suas críticas e de suas opções. É, pois, com satisfação maior que passo a respondê-la Ao fazê-lo, porém, tenho em mente, muito mais, as atitudes assumidas em relação a nós pelos seus colegas de imprensa francesa do que a sua própria. Respeito a sua posição, tão bem definida na sua carta, embora não concorde com ela.

O mesmo não posso dizer a respeito da posição da maioria dos jornalistas franceses. Releve, pois, quaisquer observações minhas mais veementes que lhe possam parecer injustas para quem, como você, manifesta tanta simpatia pelo Brasil e pelo papel que aqui estamos desempenhando, nós do “Estado” e todos aqueles que comungam dos nossos ideais. A possível veemência não será nunca dirigida contra você, mas sim contra aqueles que jamais deixaram de ser veementes na condenação injusta e até irresponsável deste movimento revolucionário cujos objetivos e cujos meios tentarei explicar a um grande amigo do Brasil. Em primeiro lugar, peço desculpas por não ter respondido antes. Mas a demora tem uma explicação: desejava esperar este dia 15 de junho a fim de que, pelo menos, um dos aspectos da nossa revolução que mais preocupa você ficasse perfeitamente esclarecido: o dos meios que ela vem empregando.

Não sei se, pelo menos neste particular, os correspondentes dos jornais franceses ter-se-ão esforçado para transmitir aos seus leitores uma imagem exata do que aqui se passou. Sim, se passou, porque se os correspondentes a que me referi foram, efetivamente, honestos e precisos, você já deverá saber, a esta altura, que está encerrado o período daquilo que os jornalistas europeus em geral, na medida em que são mais ou menos contra todo movimento que não venha ao encontro dos interesses do “progressismo internacional”, chamaram de “caça às feiticeiras”. As nossas estão caçadas, Lapouge, e a “temporada de caça” está encerrada.

São exatamente 299 pessoas que tiveram seus direitos políticos suspensos por dez anos (não podem votar e nem ser votadas). Entre essas, estão 5 governadores de Estado, 11 prefeitos municipais, 51 deputados federais e dois senadores. Entre estes, figura o rei Farouk da nossa revolução, esse sorridente Juscelino Kubitschek cuja crônica “financeira” a imprensa estrangeira insiste em desconhecer a fim de mais facilmente poder explorá-lo como mais um mártir do “progressismo internacional” (!) Também se pode colocar na lista dos “mártires” 46 oficiais das nossas Forças Armadas que foram transferidos para a reserva, com todas as regalias proporcionadas habitualmente pelos nossos regulamentos militares. Nenhum desses, note bem, sofreu qualquer outra punição. Todos continuarão em liberdade, podendo tratar livremente de suas vidas desde que os inúmeros inquéritos abertos pela revolução a fim de apurar até que ponto ia a corrupção impressionante que minava o “ancien régime”, não os envolva futuramente em complicações com a polícia. Aliás, é preciso deixar bem claro que apenas uma minoria desses cidadãos — embora imprensa francesa provavelmente nada tenha informado a respeito — são acusados de atividades comunistas.

A esmagadora maioria deles, inclusive alguns cuja punição causou o mais intenso júbilo entre o operariado deste país, por se tratar de notórios plutocratas cuja vertiginosa prosperidade eles só puderam conquistar à custa da maior torpe exploração de seus empregados — a maioria deles, dizia eu, foi punida única e exclusivamente por comprovada e documentada desonestidade no trato dos bens públicos e particulares.

Para nós, para todos aqueles que fizeram a revolução porque acreditam na necessidade imperiosa de uma revolução que liberte o Brasil definitivamente da sinistra aliança entre o comunismo e o gangsterismo nacionais, a exiguidade da lista dos punidos constituiu uma decepção e uma advertência.

Verificamos, neste momento, que agindo como agiram, com uma parcimônia e uma benevolência que podem ser tudo menos revolucionárias, os homens que subiram ao poder na crista da Revolução praticaram um erro que poderá ter as mais sérias consequências: deram a todos que, como seus colegas da imprensa francesa, parecem decididos a só aceitar ação revolucionária quando a revolução é caracteristicamente antiocidental, o argumento de que necessitavam para alegar que o nosso foi um movimento iníquo e injusto. Efetivamente, Lapouge, na opinião dos verdadeiros revolucionários brasileiros, aqueles que prepararam durante quase dois anos a revolução que explodiu em 31 de março — tenentes, capitães, majores e coronéis das Forças Armadas aliados a um dispositivo civil que permanece ainda hoje mobilizado — o fato de se terem poupado alguns dos principais responsáveis pela situação que nos levou quase à guerra civil, foi, antes de tudo, uma tremenda injustiça praticada contra os que foram atingidos pelas sanções revolucionárias.

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Daqui para frente, tudo o que poderá acontecer, se a revolução brasileira continuar, será a consequência normal das conclusões dos numerosíssimos inquéritos, feitos exatamente como começou a fazê-los o governo constitucional do sr. Janio Quadros. Vocês, na Europa, não ficarão sabendo nada a respeito. Os correspondentes que os grandes jornais franceses têm aqui, não estão, evidentemente, interessados em contar uma história que nos enche de vergonha, é verdade, mas que justificaria qualquer revolução e deixaria em má situação aqueles que se apressaram em julgar a nossa aplicando aqui as categorias criadas nos princípios do século passado por alguém que se revoltara contra as iniquidades do “capitalismo manchesteriano”.

Talvez seja melhor assim, Lapouge, para que você não fique sabendo, pormenorizadamente, quantos “estudantes” daqueles sobre cuja sorte você parece tão preocupado — e que, diga-se de passagem, estão, também eles, em pleno gozo dos seus direitos — eram realmente idealistas sinceros e quantos eram apenas meras barregas do bordel corrupto — comunista.

O importante, por enquanto, é que você saiba que ninguém foi fuzilado, nenhum livro foi queimado, nenhum professor perdeu até agora sua cátedra, nenhum jornal, nem mesmo os mais rigorosamente contrários à revolução, tem sido censurado. Os próprios oficiais “progressistas” que tentaram assassinar esse terrível Carlos Lacerda que tanto irrita a imprensa “progressista” francesa, não tiveram o destino dos oficiais franceses que tentaram assassinar o general de Gaulle. Não foram fuzilados, nem eles, Lapouge. Apenas passaram para a reserva (remunerada).

Quanto ao “Estado”, posso afirmar que já passou a criticar, e violentamente, a revolução. Até ontem, não criticara porque não vira o que criticar. Nem mesmo as prisões e os interrogatórios. É que tendo participado de todos os movimentos democráticos que se verificaram neste País desde a fundação deste jornal, tendo sofrido nas prisões e no exílio as consequências de sua fidelidade aos princípios que apregoa, seus diretores, que jamais cogitaram de pedir a ninguém clemência pelas consequências de suas atitudes, continuam plenamente convencidos de que numa revolução, como numa guerra, os vencedores têm o dever moral de ditar a sorte dos vencidos. No Brasil, como em qualquer parte do mundo, uma revolução vitoriosa não pode evitar as injustiças. Mas o Brasil leva uma vantagem sobre todos os demais países do mundo: é que não se conhecendo aqui — pelo menos nas lutas políticas — a prática da violência pelo amor da violência, não se empregando aqui o método do extermínio físico do adversário — preconizado, aliás, por aqueles que a revolução derrotou — toda e qualquer injustiça cometida no calor da refrega é rápida e totalmente reparada. Será assim, Lapouge, enquanto o Brasil não cair nas mãos daqueles que a revolução derrotou.

Acalmados, como acredito que estejam, os seus temores a esse respeito, passemos adiante.

Dizia, no meu telegrama, que mereceu a sua apreciada resposta, que você sofre a influência da atmosfera que reina entre jornalistas e intelectuais europeus, em geral, e particularmente franceses. Sua carta parece confirmar a minha afirmação.

CONFIANÇA NA LÓGICA

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O grande mal dos franceses, meu caro Lapouge, foi e será sempre essa pouco humilde confiança que sempre tiveram na lógica cartesiana, como se os homens e a aventura humana fossem realmente governados pela razão, no sentido cartesiano do conceito. “Cogito, ergo sim”. Muito bem. Mas nunca vi, nem Descartes nem qualquer outro filósofo do meu modesto convívio com a filosofia, afirmar “Sum, ergo cogito”, nem, muitos menos “sumus, ergo cogitamus”. Diria mesmo, meu caro Lapouge, que o grande mal do mundo moderno, mal terrivelmente agravado pela anulação, pela técnica, das distâncias físicas, é a difusão vertiginosa e maciça do que alguns poucos “cogitant” por entre a esmagadora maioria dos que, embora existindo, não possuem as coordenadas necessárias para se situarem no tempo e no espaço, o que, no meu modesto entender, é o que significa “pensar”. Ora, Lapouge, para “pensar” o problema brasileiro, é preciso situar-se no tempo e no espaço (históricos) brasileiros, assim como para pensar o problema francês é preciso situar-se no tempo e no espaço (históricos) franceses. Eu fiz isso, na medida limitada das minhas capacidades, sempre que fui profissionalmente obrigado a analisar a problemática da política francesa contemporânea e foi certamente por isso que, contrariando o consenso mais ou menos geral, mantendo-me imune à atoarda da propaganda elaborada com os condimentos habituais das frases feitas, dos conceitos pré-elaborados, dos “clichês” armazenados nos arsenais das ideologias que se pretendem universalmente válidas, pude compreender, no momento em que de Gaulle assumia o poder pela segunda vez — para citar um exemplo — o total absurdo das interpretações daqueles que pretendiam apresentá-lo como o chefe escolhido de um movimento fascista. Sim, Lapouge, não era preciso ser gênio nem profeta para compreender, naqueles dias dramáticos do golpe de Argel, o que nem mesmo os “golpistas” de Argel, com suas inteligências paralisadas pela paixão violenta, foram capazes de enxergar: que de Gaulle era o único homem na França daqueles dias capaz, exatamente, do impedir a implantação do fascismo argelino na França Metropolitana. Compreendíamos nós, aqui no Brasil, meu caro Lapouge, que o de Gaulle rotulado de “fascista” por tantos franceses ilustres, cartesianamente ilustres, iria fatalmente realizar o que os socialistas da SFIO se recusavam a realizar.

Comprendíamos, Lapouge, porque nós recusávamos então, como agora e como sempre, a aceitar a ditadura da lógica transformada em instrumento de proselitismo de uma ideologia que, por mais que você não perceba, conseguiu essa terrível que foi a imposição quase universal de uma nomenclatura política e sócio-econômica.

Se nos tivéssemos submetido, como se submetem tantos e tão importantes jornalistas e intelectuais franceses e europeus em geral, não teríamos compreendido, como não compreendem eles, qualquer fenômeno político ou social que escape às categorias elaboradas nos princípios do século passado por alguém que “pensou” uma realidade geográfica e historicamente circunscrita, hoje totalmente ultrapassada.

O QUE FEZ O POVO BRASILEIRO

Sem fugir dessas categorias, Lapouge, ninguém poderá compreender nada que não seja exatamente igual à realidade em função da qual elas foram criadas. Os jornais franceses, e os europeus em geral, não fogem nunca dessas categorias, a não ser — e nem sempre — quando analisam as situações em que militam. Não poderiam, e não me surpreenderam por não terem podido, fugir delas na análise da revolução brasileira. O que me surpreendeu é o fato de você, que viveu aqui, que teve a oportunidade de se situar, durante alguns anos, no espaço e no tempo históricos brasileiros, também não ter podido fugir delas.

Mas, apesar disso, tenho a certeza de que você não pode ser enquadrado naquela categoria de jornalistas que, corno os do “Times”, de Londres, e os do “Monde”, de Paris — e todos aqueles que, em tantos jornais desse Ocidente que acreditam em pleno declínio “spengleriano”, parecem envergonhados dos próprios valores ocidentais — insistem em definir revolução como todo movimento que se impõe a um país a fim de afastar esse país do sistema ocidental para aproximá-lo do sistema comunista de vida. Se você pensasse como eles, então não adiantaria prosseguir no diálogo. Mas, como acredito que você ainda pertence a essa categoria tão escassa de homens que, pertencendo ao mundo ocidental, não veem deturpação dos valores da nossa civilização por governos ineptos, corruptos ou simplesmente traidores, senão um estímulo para que se lute por seu revigoramento, inclusive, se necessário for, pela força e pela violência, prosseguirei na minha argumentação.

O que a esmagadora maioria do povo brasileiro fez, Lapouge, aliada a quase totalidade das nossas Forças Armadas, foi atalhar um processo que vinha suportando, cheio de angústia e de aversão, em nome, exatamente, do seu acendrado amor ao regime democrático, ao regime de liberdade. Foram eles, os que vocês rotulam com urna simplicidade de estarrecer de “progressistas”, de “esquerdistas”, mas que são fundamentalmente TOTALITÁRIOS, foram eles que, na sua espantosa ousadia, “deslancharam” o que vocês chamam de “golpe de força”.

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Nós, a esmagadora maioria do povo e das Forças Armadas do Brasil, estávamos, sim, prontos para reagir quando chegasse o momento, que eles prometiam cotidianamente, do ataque final contra o regime que vocês hoje choram e que eles proclamavam desprezar, e cujo trucidamento impiedoso inundavam estrepitosamente com todos os opulentos meios de divulgação de que a ladroeira deslavada os dotara. Estávamos prontos a reagir, Lapouge, note bem, mas não nos julgávamos em condições de agir em primeiro lugar. Na realidade, nunca imaginamos, até a hora final, que nossa força fosse tão formidável e que fosse tão profunda a fraqueza do adversário que parecia tão arrogante e tão seguro de si. Se não estou enganado, meu caro Lapouge, foi o ínclito “Monde”, de Paris, que disse, logo depois do famoso comício de 13 de março, preparado nos típicos moldes nazifascistas tão do agrado dos “progressistas” latino-americanos, que “monsieur” Goulart havia atravessado o Rubicon. Que não havia atravessado, nós sabíamos. Sabíamos também que não o atravessaria sem luta, sem muita luta, sem muito sangue derramado. Sabíamos que o Brasil poderia mergulhar numa terrível guerra civil mas nunca, jamais, em hipótese alguma, viria a ser uma nova Checoslováquia. Nós sabíamos, Lapouge, — e vocês não podiam saber porque possuem aqui correspondentes ou facciosos, ou incompetentes ou, sobretudo, desonestos — nós sabíamos que o senhor Goulart não atravessaria o Rubicon sem luta, e duvidávamos que o atravessasse na luta, mas nunca imaginamos que a podridão que minava suas hostes fosse tão profunda a ponto de impedir qualquer gesto mais másculo de um único dos seus membros no momento em que nos dispusemos a defender o regime que eles se proclamavam dispostos a destruir. Sim, Lapouge, nós não desferimos um “golpe de força”. Nós nos defendemos de um golpe que parecia ser de força e, defendendo-nos, iniciamos uma revolução autenticamente nacionalista, exatamente igual àquela que os checoslovacos precisariam ter feito para que seu país não fosse hoje mais uma colônia do vasto império soviético. Igual àquela que o heroico povo húngaro fez, mas que lhe foi escamoteada pela intervenção do exército imperialista soviético. Na sua bendita ingenuidade, os comunistas daqui cometeram um erro fatal ao adotarem a mesma tática dos comunistas checos: eles esqueceram que o exército imperialista soviético está muito longe das terras brasileiras e que seu aliado, no Brasil, em lugar de ser aquele exército, era apenas o exército da corrupção, fantasticamente engrossado durante três décadas de deboche varguista-juscelinista-goulartista, mas não menos fantasticamente amolecido pela própria podridão. O erro e, muitas vezes, a deliberada falta de objetividade dos correspondentes que os jornais que você lê têm aqui, impediu que os europeus estabelecessem a distinção entre Fidel Castro e Leonel Brizola ou Jango Goulart. Nós sabíamos, porém, que Brizola e Goulart poderiam ser outros tantos sargentos Batista, mas nunca um Fidel Castro.

Nunca tememos esses vulgares caudilhetes latino-americanos. Tememos, isso sim, o uso que deles poderia fazer o Partido Comunista Brasileiro. E, aqui, cometemos, felizmente para o Brasil e para a causa da democracia em todo o mundo, o nosso grande erro: nunca imaginamos que aliança entre corruptos e comunistas que, assolava o Brasil ultimamente, fossem tão escassos estes últimos e tão numerosos os primeiros. Erro involuntário, Lapouge. Estávamos convencidos de que havia alguma sinceridade do lado de lá. Não tanto quanto lhe atribuía a imprensa europeia, mas alguma. O suficiente, pelo menos, para que tivéssemos de lutar para derrotá-los.

AS “PRAXIS” REVOLUCIONÁRIA

Fundamentalmente, a nossa é uma revolução democrática. É vago, reconheço. Acrescentaria, então, neste dia 15 de junho em que tanto se fortaleceram minhas dúvidas sobre a sua sobrevivência, que, se ela se completar, forjará sua doutrina na ação revolucionária. Foi exatamente essa resposta que os revolucionários cubanos deram a Sartre, quando, em princípios de 1960, pela primeira vez visitou a ilha de Fidel Castro. Colocando, então, aos ainda não definidos chefes revolucionários o problema da ideologia revolucionária, ouvia Sartre, “mil vezes a resposta: a revolução é uma ‘praxis’ que forja suas ideias na ação”. E acrescentava: “Esta resposta torna-se logicamente inatacável, mas é preciso reconhecer que se torna um pouco abstrata. É necessário compreender, é certo, as inquietações — sinceras ou fingidas — dos que dizem ignorar tudo ou recriminam ao movimento revolucionado o não ter definido seus fins. Com efeito, em Paris, há alguns meses, alguns amigos cubanos foram ver-me. Falaram longamente, com ardor, da Revolução, mas em vão tentei que me dissessem se o novo regime seria ou não socialista. Hoje, devo reconhecer que fazia mal em apresentar o problema nesses termos. Mas quando se está longe é-se um pouco abstrato e tende-se a cair nestas grandes palavras que constituem mais símbolos do que programas (o grifo é meu). Socialismo? Economia liberal? Muitas mentes se interrogam: estão convencidas de boa-fé que uma revolução deve saber para onde vai. Na verdade, estão equivocadas”. E prosseguia Sartre nessa ordem de ideias para afirmar que tanto a revolução francesa de 1789, quanto a russa de 1917 foram “totalmente cegas”.

Que sorte a minha, meu caro Lapouge, poder citar alguém tão insuspeito como Sartre para justificar minha opinião sobre a revolução brasileira — que tantos perigos corre neste momento — e, principalmente, para refutar a opinião daqueles que, na Europa e no mundo inteiro, nada compreenderam do que aqui se passou e se passa! Partindo de Sartre, iria até ao ponto de afirmar, principalmente depois de um “convívio” íntimo e cotidiano com a “praxis” cubana, que afinal nenhuma revolução jamais deixou de forjar sua doutrina na ação. E, em última análise, o que é ação revolucionária, o que é a “praxis” revolucionária, a prática da revolução? “Pratique” — diz o Lalande — “É o exercício de uma atividade voluntária modificando aquilo que nos envolve”. Ora, Lapouge, com uma imodéstia que você me perdoará, eu completarei o pensamento de Sartre e o conceito de Lalande para dizer — com o pensamento voltado para o caso brasileiro e para as suas preocupações a respeito dos meios empregados pela Revolução brasileira — que a “praxis” revolucionária deve começar pela erradicação da “praxis” anti-revolucionária, ou seja, depois da tomada do poder, que é o parto da revolução, pela erradicação, ou, pelo menos, pela neutralização das forças anti-revolucionárias. Alguma revolução jamais deixou de agir assim?

E, agindo assim, alguma revolução jamais deixou de praticar grandes injustiças? Não nos vamos deter na análise das injustiças, dos crimes e barbaridades praticados em nome do ideal de “liberdade, igualdade e fraternidade”, tão distantes no tempo que já não podem ensombrear a maravilhosa contribuição que trouxe a revolução francesa para esse único “processo irreversível da história”, que é a caminhada do homem no sentido de sua libertação de todas as servidões impostas pela sua luta pelo domínio da natureza, principalmente aquelas que são o fruto dos próprios artifícios por ele engendrados para melhor enfrentar essa luta — como o aparelho estatal, por exemplo. Nem nos deteremos na análise dos crimes e barbaridades praticados em nome do ideal da extinção das classes, análise essa, de resto, já feita com a acuidade tão impressionante por Nikita Kruchev, no XX Congresso do Partido Comunista Soviético. Também não cabem aqui digressões sobre as barbaridades e os crimes, praticados ainda hoje, em todos os recantos do mundo, por tantas revoluções, em nome deste ou daquele ideal, sem que se vislumbrem ainda nem os mais leves sinais de uma futura compensação, como a que proporcionaram, para os seus crimes e as suas barbaridades, a revolução francesa, sem dúvida e, quase certamente, também a revolução russa.

A IMPRENSA EUROPEIA

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Não nos vamos deter nos crimes e nas barbaridades praticadas por quase todas as revoluções, através dos tempos. Vamos, apenas, nos deter na reação da imprensa europeia em geral e na sua reação em particular — tão influenciada por aquela — diante, não dos crimes e das barbaridades que aqui não foram praticados, mas tão-somente das injustiças, que certamente houve, praticadas pela Revolução brasileira. Vamos nos deter nessa reação, Lapouge, porque não existe demonstração mais clara da oportunidade daquilo que eu dizia, no início desta carta, a respeito da cegueira irremediável daqueles que adotam, para analisar os fenômenos políticos e sociais de hoje, a categorias marxistas-leninistas.

Para esses — e entre eles está, talvez sem perceber, a grande maioria dos jornalistas europeus — revolução passa a ser, única e exclusivamente, todo movimento que vive a substituição de um regime de tendência filo-ocidental por outro de tendência, pelo menos, antiocidental quando não franca e decididamente filo-soviética. Afinal, Lapouge, é preciso ser-se completamente cego para não ver que aquela ideologia citada transformou-se, nos dias em que vivemos, em simples instrumento da política externa, francamente imperialista — como o denunciam com tanta propriedade seus amigos chineses — de uma grande potência que se preocupa, precipuamente, com a luta que trava com a outra grande potência, que se opõe aos seus desígnios expansionistas (expansionismo territorial e, sobretudo, expansionismo ideológico).

Vocês nunca ouviram falar, aí em Paris, em “chauvinismo” de grande potência”, Lapouge? Nós aqui já. Até aqui, tudo normal. O que não é normal é o fato de jornais mais ou menos “conservadores”, como o “Times”, de Londres, ou o “Monde”, de Paris, se obstinarem em não ver isso e aceitarem, numa atitude covarde, assexuada e, sobretudo, estúpida, fruto do impressionante complexo de inferioridade que a fase imperialista e colonialista da Europa deixou nas gerações europeias de hoje, para definirem todo e qualquer movimento político-social que se verifica no mundo de hoje, o jargão “marxista-leninista”, para empregar um eufemismo que os chineses denunciam todos os dias.

Isso não é verdade? Então, pergunto, por que um movimento tipicamente fascista, como o de Nasser, por exemplo, é considerado “socialista” pelo europeus em geral? Por que o “Monde” e o “Times”, para não falar nesse híbrido “Express”, se recusam a denunciar ao mundo as barbaridades praticadas pelo coronel egípcio contra seus adversários políticos? Por que os “progressistas” de todas as Europas jamais levantaram a voz para condenar os assassínios em massa praticados por Fidel Castro, as torturas a que são submetidos diariamente mais de oitenta mil prisioneiros políticos naquela infeliz ilha “libertada do imperialismo norte-americano”? Por que não se publicou aí o relatório da Comissão de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos contendo os depoimentos dramáticos de alguns poucos que puderam escapar daquele campo de concentração, relatório esse que nos traz à memória o “do fundo da noite”, de Jan Valtin? Por que, em nome de quê? Será que estão esperando algum Kruchev cubano que num vigésimo congresso do futuro remoto venha perturbar as consciências adormecidas pelos mitos que compensam complexos de culpa? Ou será que eles creem, sinceramente, que uma revolução que cassou todos os direitos políticos de todos os cidadãos que não façam parte do pequeno grupo que domina discricionariamente, que suprimiu todos os direitos dos operários, que lhes reduziu os minguados salários, que lhes aumentou compulsoriamente as horas de trabalho, que aumentou a fome e a miséria de todo um povo, mereça nossa admiração só porque se diz socialista e antiocidental?

Por que essa atitude covarde de aceitar as categorias do adversário? Por que chegar ao absurdo inconcebível do “Times” e do “Monde”, de considerar a prova suprema de que nossa política externa deixou de ser independente o fato de termos rompido relações com a Cuba de Fidel Castro? Então qualquer ato de qualquer país, que coincida com os interesses do bloco democrático é prova de submissão? E por que não é prova de submissão a presença de milhares de soldados russos em solo americano? Por que não é prova de submissão a aceitação, pelo coronel Nasser, da lição que lhe deu, em seu próprio país, sobre o que é “nacionalismo pan-árabe”, o simpático Nikita Kruchev? Por quê? Somente por que são outros tantos episódios que refletem o ódio de Fidel e de Nasser contra os Estados Unidos e contra a Europa Ocidental?

REFLETINDO OS RÓTULOS

Nós compreendemos os complexos e até essa atitude masoquista da Europa, em plena fase de menopausa política, Lapouge.

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Compreendemos, mas não a aceitamos, no momento em que o complexo se transforma em fonte de agressão contra nós que, neste dia 15 de junho em que se encerra o prazo de “ilegalidade revolucionária”, isto é, aquele prazo dentro do qual a Revolução teve poderes para agir discricionariamente contra seus adversários, apresentamos — confesso que no meu caso pessoal, decepcionado e apreensivo quanto ao futuro da Revolução — este balanço quase ridículo: 51 mandatos de deputados cassados, 299 pessoas com direitos políticos suspensos por dez anos e 46 militares reformados! Nenhum fuzilamento, Lapouge. Ninguém, até agora, preso sem culpa formada e, posso garantir nenhum daqueles estudantes e professores que você se refere de forma tão angustiada, apesar da circunstância degradante de ter ficado demonstrado que também os “estudantes” inquiridos pelos revolucionários eram, na sua imensa maioria, acusados documentadamente de crime de corrupção e não de “crimes” ideológicos.

E com todo esse balanço melancólico da ação anti-revolucionária de uma Revolução que poderá pagar caríssimo pelo crime de não ter agido, neste terreno, implacavelmente — mais humanissimamente, como é do estilo brasileiro — desaba o mundo sobre os revolucionários brasileiros, colocados, agora, por vocês todos que não chegam nem a desconfiar da identidade de suas reações com as de Moscou, Havana ou Pequim, no mesmo pé de crueldade de um Stalin, de um Hitler ou de um Fidel Castro.

Compreendemos a atitude lamentável dessa Europa em menopausa política, Lapouge, mas não a aceitamos quando ela se transforma em ridícula agressão contra nós. Repelimos os rótulos que nos querem pregar, em nome de uma independência real e efetiva, que já dura quase século e meio; repelimos a tentativa cretina de nos colocarem no nível e qualquer país africano, desses monstruosamente criados pela apavorante incapacidade política dessa Europa, que hoje pretende compensar o remorso por seus erros, fazendo — fora dela, evidentemente — o jogo do seu maior inimigo.

O Brasil, Lapouge, como você deve saber, é um País sem complexos em relação ao estrangeiro, cuja população é toda constituída de descendentes de populações locais massacradas nos tempos coloniais pelo invasor europeu. Aqui o nacionalismo será autêntico, feito de amor à terra e às suas tradições exclusivamente, e nunca de ódio aos estrangeiro que jamais nos fez mal algum. Talvez seja por isso que os europeus não consigam nos entender; nós não somos, como os nossos problemas, o fruto de um erro ou de um crime deles, e — o que para o europeu talvez seja ainda mais inconcebível — nós não seremos nunca, depois da vitória da nossa Revolução, tema de uma conferência de Genebra!

Nós continuaremos a ser nós mesmos, fiéis às nossas próprias tradições, convencidos de que de todas as experiências humanas no terreno da organização política, social e econômica, nenhuma ainda demonstrou ser superior a essa que fez dos povos dos Estados Unidos e da Europa ocidental também (depois que adotou, não direi o “way of life” norte-americano, mas indubitavelmente o “way of business” norte-americano), os mais prósperos do mundo, os mais próximos do ideal que é o de todos. Nós continuaremos imunes aos mitos e às mistificações que tragaram na voragem da escravidão tantos outros países menos felizes que o nosso, lembrando, na nossa humildade, a lição de Raymomnd Aron: “todos os regimes conhecidos são condenáveis se os comparamos com um ideal abstrato de igualdade ou de liberdade”.

A LIÇÃO DE CUBA

Mas voltemos, por um momento, à “praxis” que forja as doutrinas. Num determinado aspecto, aquele que tantas preocupações lhe causa — a eliminação da contra-revolução — não soubemos aproveitar o exemplo de todas as verdadeiras revoluções e, principalmente, o desta, mais próxima de nós, que Fidel Castro realizou em Cuba. Jamais, evidentemente, concordaríamos com a introdução no Brasil dessa prática infame que é o assassínio político. Nem depois de nos termos convencido, em detrimento de nossa fé no homem, de que os mais ilustres luminares da imprensa e de intelectualidade europeia, no fundo, respeitam quem tem coragem de praticar os mais hediondos crimes, desde que eles sejam cometidos em nome de algum ideal que conste dos dicionários do “progressismo” internacional. Mas também não podemos admitir que os nossos líderes revolucionários poupem os adversários da Revolução das punições — suavíssimas — que o temperamento brasileiro aconselha, a fim de impedir, intransigentemente, a sua sobrevivência política. A Revolução foi feita contra os corruptos e os totalitários. Qualquer vestígio de corrupção e de totalitarismo no novo espectro político brasileiro é crime de lesa-revolução, imputável aos líderes da Revolução.

Posso garantir a você, para grande desespero meu e de todos os verdadeiros autores desta Revolução — principalmente os jovens tenentes, capitães, majores e coronéis de nossas Forças Armadas, cujos nomes o mundo desconhece, mas que poderá vir a conhecer mais cedo do que se possa pensar — que seus anseios e os de toda a imprensa “progressista” do mundo foram atendidos por esses “líderes” — mais ou menos autênticos — da Revolução: há formidáveis vestígios de corrupção e de totalitarismo no novo espectro político brasileiro, e esse crime de lesa-revolução é imputável a alguns dos seus “líderes”. Se a Revolução tiver de continuar, eles responderão logo por ele. Se não responderem, terá deixado de existir a Revolução brasileira porque nós não aprendemos essa lição da “praxis” cubana.

Mas esqueçamos o perigo que ameaça nossa Revolução. Façamos de conta que ela já é um fato irreversível. Houve outra lição da “praxis” cubana que os revolucionários brasileiros aprenderam.

Todos eles, todos aqueles que podem realmente ser chamados de revolucionários (no momento em que escreve já se pode temer o envolvimento total desses homens pelos autênticos representantes da “velha ordem” infiltrados no movimento) foram fidelistas convictos e entusiásticos até o momento em que a “praxis” cubana levou Fidel a trair o fidelismo, para entregar sua alma atormentada ao Mefistófeles soviético que, ao contrário do outro, a cobrou à vista. Hoje, com uma perspectiva de mais de cinco anos, verificamos que não poderia ter sido de outra maneira: desde que fez do anti-norte-americanismo — em grande parte justificando em Cuba — a mola propulsora de sua revolução — que, como todas, começou somente depois da conquista do poder — Fidel Castro estava condenado, pelas leis inexoráveis da “guerra fria”, a transformar-se em mais um instrumento da política externa da grande potência chauvinista russa, perdendo sua independência e, com ela, sua revolução. Os revolucionários brasileiros aprenderam essa lição antes, muito antes de assumir o poder. Na realidade, foi essa grande lição do trágico líder de Sierra Maestra que levou à polarização do povo brasileiro em torno do núcleo embrionário da nossa Revolução, no momento em que compreendeu — a maioria do povo — que os caminhos da aliança entre o sargento Batista crioulo — o sr. João Goulart — e o comunismo crioulo do sr. Luís Carlos Prestes, nos levariam fatalmente a uma situação idêntica à de Cuba, com a agravante de não existir aqui nenhum líder nacional do prestígio de um Fidel Castro e de sermos, pelas nossas condições geo-econômicas, um problema internacional muito mais sério do que Cuba, no caso de nos transformarmos em mais um ponto nevrálgico da chamada “guerra fria”. Essa a grande lição da “praxis” fidelista aproveitada pelo povo brasileiro em benefício dos revolucionários, que jamais teriam agido sem o apoio maciço da maioria do povo. A nossa Revolução, pois, nasceu de um impulso autenticamente nacionalista e autenticamente “autodeterminista” e, posso afirmar, sem medo de errar, que depois da traição de Fidel aos ideais de Sierra Maestra e de sua submissão aos desígnios da política externa da União Soviética, é a única que pode ser considerada como tal, no mundo de hoje, enquanto continuar fiel a ela própria. (Não se esqueça, Lapouge, que escrevo neste dia 15 de junho que tantos e tão justificados temores nos trouxe sobre o futuro da Revolução brasileira).

Todas as demais revoluções vitoriosas depois do fim da Segunda Guerra Mundial foram a consequência lógica da alteração do equilíbrio mundial de poder em detrimento das antigas potências colonialistas europeias e em benefício, consequentemente, de uma das duas únicas “superpotências” existentes na atual constelação mundial, uma vez que a outra — os Estados Unidos — pela aliança que é obrigada a manter com as antigas potências colonialistas, “herdou”, “malgré elle” — inclusive, e principalmente, “malgré” seu anticolonialismo inato que é o fruto da circunstância de ser a nação norte-americana o primeiro grande produto da revolução anti-colonialista — o ódio, justificado em suas origens, das antigas nações coloniais.

Pela própria dinâmica da crise internacional — para não falar em “dialética” — surgida desde o momento em que foi disparado o último tiro da Segunda Guerra Mundial, as nações recém-emancipadas do estágio colonial foram projetadas para o centro da arena da “guerra-fria”, perdendo, em maior ou menor grau, sua independência de ação, sua autodeterminação, para empregar o neologismo tão em voga ultimamente. Não apenas o complexo colonial contribuiu para que isso acontecesse, mas também, e sobretudo, o preconceito racial às avessas — tão justificado em sua origem “revanchista”, mas nem por isso menos prejudicial aos verdadeiros interesses dos países negros ou amarelos.

O Brasil, por suas próprias condições históricas, raciais, políticas e sócio-econômicas, que você conhece tão bem quanto eu, está livre da influência de quaisquer desses fatores — que eu chamaria de irracionais — e poderia, portanto, na medida da capacidade dos líderes da sua Revolução, dar ao mundo contemporâneo o primeiro exemplo de um movimento revolucionário autêntico, puro, contribuição realmente nova para a solução dos problemas das sociedades hodiernas, tão complicados pela atuação, nas tentativas de resolvê-los, daqueles fatores que chamei de irracionais.

Seria uma contribuição de quem está fora do torvelinho internacional, semelhante, pelas condições que a tornam possível, àquela oferecida, em primeiro lugar aos europeus desesperados da capacidade da Europa de então de resolver os seus problemas, pelos Estados Unidos, quando os Estados Unidos — ainda longe de serem uma grande potência mundial — surgiram como a terra prometida de todos os humilhados e ofendidos deste vale de lágrimas.

Tendo aprendido a lição da “praxis” cubana, os revolucionários reúnem todas as condições para realizar uma grande revolução, cuja teoria, certamente inédita e certamente profícua, nossa “praxis” revolucionária se encarregaria de oferecer à Humanidade como contribuição desta sua parcela brasileira ao único “processo inexorável da história” — a caminhada para a sua total libertação política, social e econômica. A libertação total, evidentemente, é o ideal que nunca será atingido, mas uma aproximação cada vez maior desse ideal terá de continuar sendo, até o fim dos tempos, o grande ponto de referência das sociedades humanas.

MEIO E FIM

O que houve no Brasil, em primeiro lugar, como dizia eu no início desta carta, foi uma vigorosa reação contra a tentativa franca e ousada de uma minoria comunista, aliada a uma quadrilha de aproveitadores corruptos e corruptores, de impor o terrorismo ideológico neste País como primeiro passo para a conquista do que seria, indiscutivelmente, a maior vitória da União Soviética em toda a “guerra-fria”: a cubanização do maior país da América Latina, o único, talvez, neste lado do Atlântico, com condições para se transformar dentro de um breve espaço de tempo numa grande potência a serviço dos ideais que informam o sistema de vida ocidental e democrático.

Neste sentido, a Revolução brasileira é, essencialmente, uma Revolução democrática que visa a revitalização das instituições democráticas a fim de que, dentro delas e no respeito intransigente a elas, se possam realizar todas as reformas sociais e econômicas necessárias para que se complete o nosso já impressionante processo de desenvolvimento. A Revolução brasileira está sendo feita, entre outras razões, para que não se cometa aqui o mesmo trágico equívoco que condena ao malogro ostensivo, desde já, em todos os recantos do mundo onde se verificaram, as várias e melancólicas revoluções mais ou menos “nacionalistas” e mais ou menos “socialistas”: o equívoco de transformar o meio em fim.

O objetivo, Lapouge, a grande meta da Humanidade inteira, não é o socialismo. O objetivo é, pura e simplesmente, em que pese a irritação que a simplicidade da constatação possa causar aos estéreis cultivadores de um arquiintelectualismo que infestam o mundo ocidental, o máximo possível de bem-estar para o máximo possível de gente, dentro do máximo possível de liberdade. O padrão do mundo moderno —- e imagino o escândalo que tal afirmação causará aos que se alienaram nos mitos ideológicos —- são os Estados Unidos da América do Norte, apesar de toda a distância que ainda o separam do ideal de nós todos. De Gaulle sabe disso, e somente seu orgulho doentio o impede de proclamá-lo publicamente. Kruchev sabe disso e o proclama quase todos os dias no seu comovente esforço de emulação do povo russo, já em plena revolta surda contra a imbecilidade socialista. A Revolução brasileira sabe disso e, se não for traída, poderá iniciar sua arrancada administrativa guiada por um pragmatismo sadio, única “ideologia” cabível num país que é um continente, no qual, portanto, as soluções têm de ser tão variadas como os problemas, como os estágios políticos, sociais e econômicos, como as condições, enfim.

A Revolução brasileira, Lapouge, foi preparada por homens que nunca fizeram outra coisa em suas vidas senão dedicar-se ao estudo dos problemas brasileiros e lutar pela solução brasileira desses problemas. Alimenta-os uma fé inabalável nos destinos deste País, e um orgulho sadio e justificado por essa realidade formidável que já é o Brasil de hoje e que a minoria totalitária queria destruir, para o benefício dos interesses da política internacional de uma grande potência imperialista.

A Revolução que atalhou esse processo de traição nacional conhece, em toda sua dolorosa extensão, a miséria que reina no Nordeste; tem consciência do desequilíbrio social que ainda reina neste País; está plenamente consciente da tarefa gigantesca a ser realizada para que o Brasil possa ocupar o lugar que lhe está destinado no concerto das grandes nações livres e democráticas. Mas, ao mesmo tempo, está plenamente convencida desta verdade irrefutável: nenhum país do mundo, socialista, democrático ou fascista, nesta fase conturbada da história da Humanidade em que a ciência e a técnica colocaram, teoricamente pelo menos, o homem em condições de vencer definitivamente a luta pelo domínio da natureza, extirpando de uma vez por todas a miséria e a fome da face da Terra, nenhum país do mundo apresentou ritmo de desenvolvimento e de progresso tão acelerado como Brasil nestes últimos 30 anos, até o momento em que o comunismo internacional transformou-nos no seu principal alvo, a fim de impedir aquilo que um deputado socialista italiano apontava recentíssima mente como um dos maiores perigos para a causa dos que transformaram o socialismo de meio em fim: o perigo de que o “capitalismo” resolva todos os problemas das modernas sociedades antes que se implante nelas o regime socialista.

Você leu, por acaso, Lapouge, a última obra do deputado trabalhista inglês — até muito recentemente um dos mais radicais das hostes “labouristas” — John Strachey, intitulada “Challenge to Democracy”, publicada pelos editores da revista “Encouter”? Não leu? Então procure ler, para que compreenda com que profundo desprezo me refiro a conceitos como “capitalismo” e “socialismo” numa época em que a realidade nos ensina todos os dias que as soluções práticas dos problemas das sociedades humanas não podem ser codificadas num sistema rígido, elaborado em função de dogmas não menos rígidos.

Na admirável obra do antigo deputado inglês, recentemente falecido, você encontrará, nítida e clara, a posição dos revolucionários brasileiros. Ali está, cristalinamente exposto, o pragmatismo sadio com que eles, como todos os homens lúcidos do mundo moderno, se dispõem a enfrentar os problemas da sociedade brasileira. Lendo esse trabalho, você compreenderá por que eu afirmo que o essencial, no mundo de hoje, é a organização política das sociedades. Os sistemas políticos, sim, podem variar ao sabor das opções humanas, nem sempre determinadas por fatores racionais. As soluções para os problemas econômicos — de “desenvolvimento”, para ser fiel à terminologia em voga — essas são técnicas e universais. Cometerá no mínimo um erro, talvez um crime e certamente uma imbecilidade quem pretender submetê-las ao crivo da ideologia. Essa verdade simples, que repito, Nikita Kruchev proclama todos os dias ao perder o sono com o fracasso da “agricultura coletivizada”, constitui o cerne “filosófico” da nossa Revolução. Estamos convencidos, nós revolucionários brasileiros, de que o problema crucial é o da metodologia política da aplicação das soluções técnicas, colocadas pela ciência à disposição de quem a elas deseje recorrer.

RECORRENDO A DJILAS

“Na história, nenhum regime — ou relativamente democrático enquanto perdurou — foi precipuamente estabelecido com base na aspiração de atingir fins ideais, mas sim sobre a base dos pequenos recursos de cada dia que estavam à vista. Ao mesmo tempo, todo regime desse tipo atingiu, mais ou menos espontaneamente, grandes objetivos. Por outro lado, todo regime despótico procurou justificar-se pelos seus alvos ideias. Nenhum deles atingiu grandes objetivos”.

Foi Djilas quem escreveu essas linhas, Lapouge. Você sabe quem é Djilas. Você leu “A Nova Classe”. Despoje-se, Lapouge, você que é um homem inteligente e lúcido, dos preconceitos que se refletem em frases como aquela que você escreveu a respeito da “Classe que está no poder no Brasil”. Todas as “classes” que estão no poder — no Brasil ou na França, na Rússia ou na China, ou mesmo em Cuba — são uma “nova classe”, no sentido em que a define Djilas, não importa qual seja sua origem “social”. Isso não é importante.

Ali, naquela frase de Djilas que transcrevi, está o que é realmente importante, porque ali está a verdade, relativa como tem de ser toda a verdade. Se a Revolução brasileira continuar, será para que sua “praxis” elabore uma doutrina que não poderá ser nada além do desenvolvimento daquilo que está contido na frase de Djilas. Como ele, os revolucionários autênticos desta Revolução ameaçada acreditam que sua missão precípua é denunciar, pela ação, a grande mistificação ideológica.

Eles não são anticomunistas, no sentido pejorativo que você pretende dar à expressão. Eles são, isso sim, intransigentemente antitotalitários como já demonstraram quando sofreram as consequências de sua luta antifascista. São, sobretudo, antimaccarthistas, contra esse “maccarthismo” às avessas que pretende atemorizar todos aqueles que não veem qualquer diferença intrínseca entre o depoimento de Schirer sobre a abjeção do Terceiro Reich e o depoimento de Kruchev sobre a abjeção do regime comunista. Eles agiram em legítima defesa, própria e da causa da liberdade do mundo todo. Se não fossem traídos, como parece que já começam a ser, darão a essa causa uma contribuição que deverá ser decisiva. E o mundo lhes agradecerá.

E para terminar, desculpe Lapouge, a extensão excessiva desta minha carta. Não se ela poderá servir para que você se liberte, um pouco que seja, da influência que lhe causa a leitura do “Monde”. Se isso não for possível, não há nada a fazer. Por enquanto, o governo revolucionário brasileiro não dispõe de recursos para pagar àquele âncora de jornal uma publicidade tão cara como a que ele aceitou do “gauleiter” Kadar, da Hungria. Mesmo porque os verdadeiros revolucionários brasileiros, como você deverá ter percebido depois de toda essa minha “lenga-lenga”, não acreditam que se deva “vender” ideias como se “vende coca-cola.

Receba o meu abraço fraterno e desculpe a sinceridade.

Ruy Mesquita”

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