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Análises sobre o estado geral da nação

Opinião|Tentativa de legitimar conspiração bolsonarista seguiu padrão de golpes militares no mundo

Seus envolvidos enfrentam sempre o duplo desafio de justificar a ruptura institucional e de legitimar a continuidade do seu governo.

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Os testemunhos do general Marco Antônio Freire Gomes e do brigadeiro Carlos de Almeida Baptista Júnior e o depoimento de Valdemar Costa Neto, presidente do PL, somados ao conteúdo da delação premiada do tenente-coronel Mauro Cid, ex-braço-direito do então presidente Jair Bolsonaro, e a abundância de provas materiais colhidas pela Polícia Federal, entre as quais a famigerada “minuta do golpe”, encontrada na casa do ex-ministro da Justiça Anderson Torres, não deixam dúvida de que o Brasil escapou de um golpe de Estado nos últimos meses de 2022, após a vitória de Lula nas eleições presidenciais. O roteiro segue à risca o padrão mundial dos golpes militares: seus envolvidos enfrentam sempre o duplo desafio de justificar a ruptura institucional e de legitimar a continuidade do seu governo.

O general e o brigadeiro expuseram a tentativa de Bolsonaro de assegurar respaldo armado ao seu plano de decretar estado de sítio e uma Operação de Garantia de Lei e da Ordem (GLO) para permanecer no poder apesar da derrota eleitoral. Valdemar, por sua vez, escancarou a pressão de Bolsonaro e de deputados do partido para produzir uma justificativa qualquer para questionar o resultado das urnas.

Braga Netto e Bolsonaro estão entre os investigados por tentarem dar um golpe de Estado Foto: WILTON JUNIOR/ ESTADÃO

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Desde os atos de 8 de janeiro de 2023, em Brasília, aliados do ex-presidente não se cansam de dizer que a multidão invadindo as sedes dos Três Poderes não podia ser acusada de ser golpista, pois golpe se faz com tanques nas ruas. A julgar pelos depoimentos dos ex-comandantes do Exército e da Aeronáutica, porém, foi exatamente esse cenário que Bolsonaro e seu entorno almejaram.

Agora, o estado de negação dos apoiadores do ex-presidente está sendo abastecido com uma nova versão da realidade. Trata-se de afirmar que as reuniões de Bolsonaro com os comandantes militares não tinham nada a ver com golpe, mas com a discussão de atos legítimos, previstos na Constituição, para corrigir uma injustiça cometida pela “imoralidade” de juízes verdadeiramente antidemocráticos. Bolsonaro deu o mote ao afirmar para a multidão reunida na Avenida Paulista, no dia 25 de fevereiro, que estado de sítio não é golpe. “Não é crime falar sobre o que está previsto na Constituição Federal. Você pode discutir e debater tudo o que está na Constituição Federal”, completou Bolsonaro.

Entre a eleição e a posse de Lula, houve entre os golpistas uma tentativa de forjar fatos para que a anulação do resultado da eleição aparentasse ocorrer “dentro das quatro linhas da Constituição”, jargão usado de forma recorrente por Bolsonaro. Mas se isso não fosse possível, “vai ser fora das quatro linhas, mesmo”, conforme disse Laércio Vergílio, general reformado do Exército, em mensagem de áudio encontrada pela PF.

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Em qualquer lugar do mundo, golpistas costumam encontrar formas de legitimar ou legalizar seus atos. O motivo é simples: manter a obediência da sociedade à nova ordem política apenas por meio da repressão ou da cooptação é muito custoso e torna-se um convite à instabilidade. É preciso obter algum grau de cooperação voluntária para além da identificação ideológica com o líder que assume ou se perpetua no poder.

Em estudo publicado em 2018, os cientistas políticos Sharan Grewal e Yasser Kureshi, das universidades Princeton e Brandeis, nos Estados Unidos, avaliaram 185 golpes militares ocorridos desde 1946 em todo o mundo e descobriram que, em 53% dos casos, os governos resultantes buscaram se legitimar em seguida convocando eleições, ainda que fajutas. Essa tática de legitimação, contudo, é mais comum quando o regime anterior, que sofreu o golpe, também era autoritário. Quando o golpe militar ocorre contra um regime democrático ou em reação a um resultado eleitoral que não convém aos golpistas, como foi o caso em 2022 no Brasil, a probabilidade de que sejam convocadas eleições para legitimar o novo regime cai consideravelmente, afirmam os autores.

A minuta golpista elaborada pelo entorno de Bolsonaro e apresentada aos chefes das Forças Armadas no dia 7 de dezembro de 2022 não faz qualquer menção à convocação de novas eleições, mas gasta bastante tinta para dar um verniz de legalidade à ruptura institucional. São vinte parágrafos com justificativas e apenas um para determinar o golpe em si, com as seguintes palavras: “declaro o Estado de Sítio; e, como ato contínuo, decreto Operação de Garantia da Lei e da Ordem”.

Depoimento de Valdemar Costa Neto, que também foi alvo da Tempus Veritatis, indicou pressão de Bolsonaro para atacar urnas eletrônicas Foto: WILTON JUNIOR/ ESTADÃO

A palavra “legitimidade” e suas variações “legítima”, “ilegítima” ou “legitimação” aparecem nada menos que doze vezes no documento. “Legalidade” e “ilegalidade” surgem quatro vezes. “Moralidade” é usada onze vezes, e é apresentada como um valor de moderação da legalidade. Ou seja, a minuta demonstra uma enorme preocupação em dar legitimidade ao golpe e, para isso, acusa a Justiça, inclusive a eleitoral, de estar corrompida e de tomar decisões injustas e apartadas da “moralidade institucional”.

Também nesse aspecto a tentativa frustrada de ruptura democrática em 2022 segue a tendência mundial dos golpes de Estado. Em um artigo publicado em 2020, os pesquisadores japoneses Taku Yukawa, Kaoru Hidaka e Kaori Kushima analisaram os golpes de Estado ocorridos entre 1975 e 2014 e registraram duas mudanças de padrão após o fim da Guerra Fria, no início dos anos 90. A primeira é que os militares golpistas passaram a recusar a classificação de “golpe” para seus atos e a apresentar o governo instalado por eles como “civil”, ocultando a influência militar. A segunda é que os golpistas valorizam mais do que antes a tentativa de vender seus atos como democráticos e constitucionais.

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Os conspiradores de 2022 não inventaram nada de novo no universo do golpismo. Até as artimanhas argumentativas para tentar legitimar seus atos são manjadas.

Opinião por Diogo Schelp

Jornalista e comentarista político, foi editor executivo da Veja entre 2012 e 2018. Posteriormente, foi redator-chefe da Istoé, colunista de política do UOL e comentarista da Jovem Pan News. É mestre em Relações Internacionais pela USP.

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