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Como a conjuntura do País afeta o ambiente público e o empresarial

Segurança de Estado e Segurança Nacional: A Segurança Pública está na sua base

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Por Redação
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Fonte: arquivo pessoal.  

Tarso Genro, Presidente de Honra do Núcleo de Segurança Pública na Democracia do IREE. Advogado, Professor Universitário, Ensaísta. Foi governador do Estado do Rio Grande do Sul (2011 - 2015), Ministro da Justiça (2007 - 2010), Ministro da Educação (2004 - 2005), Ministro das Relações Institucionais (2006 -2007), Prefeito de Porto Alegre (1993 - 1997, 2001 - 2002) e Deputado Federal (1989 - 1992)

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O conceito de civilidade democrática nos alvores do Estado Moderno está lá em Locke, no capítulo VIII do seu "Segundo Tratado sobre o Governo", quando fala do "começo das sociedades políticas": "... portanto vemos que, nas assembléias que tem poderes para agir mediante leis positivas, o ato da maioria considera-se como sendo o ato de todos e, sem dúvida, decide, como sendo o poder de todos pela lei da natureza e da razão" (...) (dito antes) "no qual a maioria tem direito de agir e resolver por todos." Fica fácil visualizar na visão de vanguarda de Locke que percorre o texto, as funções dos corpos de segurança na sociedade política nascente, pois ele estabelece - sem mediações - um vínculo entre "maioria", "natureza" e (reta) "razão".

O excelente artigo analítico do Professor Benedito Mariano sobre o SUSP e o PRONASCI, neste jornal, dia 26.06, dá uma medida certa do que seria hoje um Programa de Segurança Pública de resgate da civilidade democrática, vilipendiada com esmero doentio nos quatro anos do desgoverno que findou.

A relação entre segurança e civilidade democrática vai se tornando cada vez mais complexa, à medida que o conceito de "segurança pública" (policial) no Estado Moderno, ao mesmo tempo que ganha legitimidade com as distintas especialidades a que o termo "Polícia" se refere, cada vez mais independente como corporação, logo, também como corpo demandante sobre o Estado formalmente constituído. O Estado Policial no sentido "puro" do termo tem, porém, outro estatuto, pois ele se escora no apoio direto da autoridade do Príncipe que também depende da fidelidade do corpo policial, ambiguidade ainda frequente na sociedade industrial moderna. As ações de Polícia se nutrem em qualquer regime, tanto na exceção, pelas frestas da legalidade, como na potência da autoridade estatal sem a observância das leis. Estas considerações levam à tese que, sem segurança pública eficaz e Polícia com civilidade democrática (e assim respeitada) não há democracia sustentável nos Estados de regimes liberais democráticos.

A Segurança de Estado nas democracias liberais deve repousar, no atual ciclo de crises, numa outra dogmática: o controle do território, como base para a proteção contra o crime, que circula em fluxos globais, e não é mais produzido só "internamente". Hoje os crimes do cotidiano nas grandes regiões metropolitanas integram o conjunto das relações internacionais, lícitas e ilícitas, que não tem mais nenhuma relação com a antiga bipolaridade da Guerra Fria, o que implica a necessidade de buscar - a partir de uma atualizada visão de Segurança do Estado - um novo conceito de Segurança Nacional. Antes a Segurança Nacional determinava a concepção de Segurança de Estado, hoje - contrario sensu - a Segurança do Estado define o sentido da Segurança Nacional, cravada no controle do território, não mais vinculado a longínquos projetos a serem fruídos no Juízo Final. Tanto pelo funcionamento normal das instituições do Estado de Direito, como pela força imediata da identidade nacional - baseada na língua, na continuidade do território e na ideologia de uma comunidade de destino - tal conceito visa assegurar a "ideia de nação" contra os fluxos externos da criminalidade globalizada.

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A busca do mais amplo leque de relações internacionais, defendendo a paz e o direito soberano das nações ao controle do seu próprio território, é um novo fundamento da Segurança de Estado, em sentido amplo. E, a partir dele, o "direito à Segurança Pública" é hoje o aspecto mais relevante da agenda de qualquer Governo Democrático, que emergiu da legitimidade das urnas, já que a Segurança Pública - tratada de forma alheia aos fatos que geram a criminalidade mais violenta e perigosa - fica indiferente à disputa concreta sobre o controle do território. Daqui, portanto, emana uma visão de Segurança Nacional que coloca o poder sobre a sanidade social e eco-ambiental, como o centro de uma estratégia de poder legítimo, para que a nação possa decidir sobre seu destino.

Penso que para debater em profundidade a questão da Segurança Pública numa democracia política sobrevivente -  num Estado Democrático Constitucional - é necessário levar em consideração as mudanças na percepção dos cidadãos, dos fatos que incidiram diretamente na sua idéia de vida "segura", que ocorreram nos últimos 50 anos: a realidade da segurança, numa época histórica de globalização dos problemas mais agudos - logo, de  respostas mais lentas e "inseguras" - a vida se tornou mais perigosa para a ampla maioria do povo. De outra parte, é necessário entender a fusão - na vida real e no imaginário das pessoas comuns - dos seus impasses cotidianos, que não são mais problemas "exclusivos" de uma região, de um "lugar certo", de um país, ou mesmo de um continente determinado.

A geografia do espaço definido pelas regras de fronteira perdeu o terreno para geografia do espaço em crise, que globalmente unifica e multiplica a insegurança, com a tendência de bloquear o pensamento estratégico, pela tentação da busca de soluções "urgentes" (não raro demagógicas), aparentemente eficazes para reduzir a criminalidade e oferecer mais segurança aos cidadãos. A cada crime hediondo corresponde um aumento de pena e a cada destruição do patrimônio público e privado - em movimentos de rua - vertem mais apelos ao "endurecimento" do Sistema Policial e da repressão ilimitada. Se tudo isso aumentasse a segurança na vida real, seria uma boa e rápida saída para superar o acúmulo de problemas na segurança pública e todos poderíamos dormir melhor.

O problema é que a vida real mostra que estas reações não levam a soluções, pois os fluxos de criminalidade não são mais particulares e localizados, mas universais, e a Segurança do Estado Democrático não coincide - nem mais se subordina - ao conceito de Segurança Nacional, que estimulava ações de todos os tipos de autoridades sem freios sem, aplicadas a ferro e fogo pelas ditaduras de todas as naturezas. A identidade da Segurança do Estado com a Segurança Nacional - independentemente da identidade ideológica de quem deseja uma mudança para melhor na Segurança Pública doméstica - foi revogada pelas novas formas de ação criminosa que dão substância à globalização, cujas características não mais permitem o controle dos fluxos que disseminam, tanto os crimes comuns, os crimes ambientais, como os crimes contra o Estado.

Estes "fluxos" (Castells) não são predominantemente apoiados em átomos, mas em "bits". Não são somente baseados em armas e ideias, mas em movimentação de informações como capital monetizável, propagação legal e ilegal de técnicas e de incentivos à mercantilização - lícita e ilícita da natureza e da vida comum -, programas legais e ilegais de roubo e absorção da biodiversidade, exploração  de riquezas - ouro e nióbio por exemplo - que se transmudam em devastações das comunidades originárias , grilagem de terras e contrabando, com uma grande parte desta "valorização ilegal do capital", sendo empregado no tráfico de drogas e no financiamento do crime organizado nas grandes regiões metropolitanas, que passam a influenciar frações de aparelhos partidários, com financiamentos de campanhas eleitorais.

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É visível no horizonte da crise que as próximas violências localizadas no continente serão as narco-guerrilhas, as grilagens disfarçadas de "luta pela terra", nas lutas intestinas entre grupos criminosos para a ocupação da Amazônia, ou as lutas abertas pelo controle das rotas de circulação e comercialização das drogas pesadas. Em síntese, hoje é impossível separar Segurança do Estado Democrático, Segurança Nacional como base da nação soberana, e Segurança Pública para a fruição dos direitos democráticos na vida cotidiana.

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