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As relações entre o Poder Civil e o poder Militar

Ofensiva de Bolsonaro contra Supremo reflete insatisfação de seus generais com a Corte

STF é visto pelos militares que apoiam o presidente como um obstáculo ao governo; plano para domesticar o tribunal existe desde 2018

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Por Marcelo Godoy
Atualização:

Caro leitor,

o desejo de um acerto de contas com o Supremo Tribunal Federal não é um exclusivo de Jair Bolsonaro. Sua última ameaça à Corte, dizendo que definirá o que fazer em relação a ela após ser reeleito, é a retomada de uma ideia expressa pela primeira vez em 2018, portanto, muito antes de seu governo sofrer qualquer derrota no plenário do tribunal em temas que foram desde o controle do combate à pandemia de covid-19 à limitação da autonomia das universidades públicas.

O Presidente da República e candidtao a reeleição, Jair Messias Bolsonaro (PL), Fala com jornalistas no Alvorada  

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Era 2 de julho de 2018. Então candidato à Presidência pelo PSL, Bolsonaro revelou em uma entrevista em Fortaleza (CE) que pretendia ampliar de 11 para 21 o número de ministros do STF. Seria uma forma de pôr, segundo suas palavras, “juízes isentos lá dentro”. O modelo seguia a fórmula dos argumentos usados na Venezuela pelo tenente-coronel Hugo Chávez, outro militar que encheu de generais seu governo. No País vizinho, a Justiça se tornou fiel ao presidente e não à Constituição.

O caminho do chavismo para a ditadura começou com uma Assembleia Constituinte, que mudou o Supremo, o Congresso e ampliou os poderes de Chávez. Seu grupo político nunca mais deixou o poder. Pois não era uma nova constituinte o desejo expresso em 2018 do candidato a vice na chapa de Bolsonaro, o hoje senador eleito Hamilton Mourão (Republicano-RS)?

O general, que já confessou admiração pelo torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra, acreditava que a nova Carta poderia ser feita por um grupo de notáveis. Não explicou quem seriam esses “notáveis” e no que se teriam notabilizado. Mourão teve de dizer que não pretendia usurpar a soberania popular ou rasgar a Constituição de 1988. É que a fórmula parecia repetir mais uma vez o que Chávez e Nicolás Maduro fizeram na Venezuela.

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Mourão sugeriu a ampliação do número de ministros do STF Foto: Mauro Pimentel/AFP

Mourão conheceu de perto a ascensão da ditadura chavista. Foi adido militar naquele país entre 2002 e 2004. Ia a manifestações de rua e conversava com populares antes de escrever relatórios ainda hoje protegidos pelo sigilo. O general e senador eleito prestaria um grande serviço à política nacional se revelasse o conteúdo de seus despachos de Caracas.

Vitoriosos na eleição de 2018, Bolsonaro e Mourão não desistiram da ideia de capturar o Supremo. Pouco depois da posse, o presidente tentou uma manobra para mexer na composição do tribunal, incluindo no projeto de Reforma da Previdência um artigo que retirava da Constituição a idade-limite de 75 anos para os ministros do STF. Ela seria definida por meio de Lei Complementar.

A medida foi incluída na Proposta de Emenda à Constituição defendida pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, outro que pretendia saber como “lidar com o Supremo”. O artigo não passou despercebido no Congresso. Nada o justificava, pensava o então presidente da Câmara, Rodrigo Maia, até porque o impacto de 11 aposentadorias era irrisório para o caixa da Previdência. Os críticos viram nele uma manobra para abaixar a idade limite dos ministros, aposentando compulsoriamente mais de metade da Corte, parte de um processo que foi chamado pelo professor e ex-chanceler Celso Lafer de “cupinização da democracia”.

Sem conseguir controlar o STF com magistrados dóceis, Bolsonaro viveu às turras com o tribunal, ameaçando não cumprir suas ordens e esbravejando contra as investigações e inquéritos conduzidos pelo ministro Alexandre de Moraes. Protegido pelo Centrão no Congresso contra toda possibilidade de impeachment, o presidente viu-se frustrado em cerca de três dezenas de julgamentos, muitos dos quais derrubaram decretos e medidas provisórias considerados inconstitucionais.

Em 2020, quando o então ministro Celso de Mello decidiu convocar para depor até “debaixo de vara” os generais Walter Braga Netto, Luiz Eduardo Ramos e Augusto Heleno no inquérito sobre interferência política na Polícia Federal, o general Luiz Eduardo Rocha Paiva, um dos ideólogos do bolsonarismo, compartilhou um texto com colegas que representa até hoje a visão de muitos dos generais do governo.

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O general Rocha Paiva escreveu texto sobre o Supremo Foto: Dida Sampaio

Rocha Paiva enxergava excessos nas ações do Supremo para conter Bolsonaro. “Quem tem certeza da própria autoridade moral não precisa decidir com ameaças provocativas e inúteis. Serenidade e bom senso é o que se espera das autoridades da República, ao invés de egolatria nociva e disruptiva em momento tão delicado.” O general lembrou até a famosa indagação atribuída ao marechal Floriano Peixoto ao saber que o Supremo ia conceder habeas corpus aos envolvidos na Revolta da Armada: “Não sei amanhã quem lhes dará o habeas corpus de que, por sua vez, necessitarão.”

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O País vivia à beira de um conflito institucional. Ao analisar a crise do estado liberal italiano após a Grande Guerra de 1914-1918, Antonio Gramsci identificou ali uma crise de autoridade. Dizia que ela consistia no fato de que o velho morre e o novo não se desnudou por completo. “Neste interregno, verificam-se fenômenos patológicos os mais variados.”

Uma das mais famosas passagens dos Cadernos do Cárcere (Q 3,34) do pensador italiano – transformado em anticristo no Brasil por uma direita populista e ultramontana –, ela é lembrada por Fernando Henrique Cardoso e muitos dos que analisam a crise que levou à ascensão de forças políticas nacionalistas e extremistas em países tão diversos quanto Rússia, Turquia, Índia, Itália, Hungria e Brasil.

Gramsci comparou essa crise ao interregno, o período entre um reinado e outro na Roma antiga. Ela se caracteriza pelo fato de as velhas camadas dirigentes não conseguirem mais desempenhar sua função. Assistiu-se entre 2018 e 2022 no Brasil o naufrágio da direita social-liberal, personificada no resultado eleitoral colhido pelo PSDB. O impasse que disso resulta não pode ser resolvido pela restauração do velho.

Lula recebeu o apoio de Simone Tebet, que cobrou clareza em suas propostas Foto: Amanda Perobelli/Reuters

Mas a nova ordem é incerta. E traz um perigo: a potencialidade obscura nela existente do surgimento de homens providenciais ou carismáticos. Eles exploram os ressentimentos contra o novo, abrindo um período de extrema insegurança. É aqui que surge Jair Bolsonaro e a versão verde-amarela do chavismo. Ao contrário de seu oponente, Luiz Inácio Lula da Silva que, pressionado por forças do centro, não detalha como deve agir na economia, Bolsonaro e os generais que o apoiam sugerem claramente o que pretendem fazer.

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Desta vez, o aumento do número de ministros da Corte foi defendido pelo general Mourão e admitido por Bolsonaro. Só os ingênuos não enxergam o alcance de tal medida. Se fosse proposta pelo PT, seria a prova para os que acusam Lula e os seus de planejar transformar o Brasil em uma Venezuela. Como a medida saiu das bocas de Mourão e de Bolsonaro, muitos silenciam, enquanto os críticos de sempre mais uma vez perguntam: Se têm essa ousadia em plena campanha eleitoral, o que se pode esperar deles vencido o pleito?

E, assim, a campanha eleitoral vai se desenrolando. Diante dela, o País parece anestesiado, pois “entre a ideia e a realidade, entre a ação e o movimento, tomba a sombra”, como escreveu T.S. Eliot em The Hollow Men. O mundo parece se transformar não por meio da revolução imaginada por Gramsci, mas como concluiu Eliot em seu poema: “This is the way the world ends/ Not with a bang but a whimper” Ou na tradução de Ivan Junqueira: “Assim expira o mundo. Não com uma explosão, mas com um gemido”.

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