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Desembargador mandou pagar royalties por critério que cidade de pai de Lira não cumpre

Barra de São Miguel, em Alagoas, arrecadou R$ 14,5 milhões sem produzir petróleo após prefeito Biu de Lira contratar advogado que se encontrou o filho em Brasília

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Foto do author Vinícius Valfré
Foto do author Daniel  Weterman
Por Julia Affonso , Vinícius Valfré e Daniel Weterman
Atualização:

Para Barra de São Miguel (AL) ter direito a uma fatia milionária de royalties de petróleo e gás, o advogado Gustavo Freitas Macedo alegou à Justiça do Distrito Federal que o município era “confrontante” com cidades produtoras de petróleo em terra, ou seja, vizinho a São Miguel dos Campos, Marechal Deodoro e Roteiro. A vizinhança bastaria, na alegação do advogado, para um repasse anual 6.000% maior ao já transferido à cidade por ela estar na “zona de produção” de Alagoas. O critério de “confrontante” com vizinho produtor para pagamentos maiores de royalties não existe na legislação brasileira.

O prefeito da cidade é Benedito de Lira (PP-AL), conhecido como Biu de Lira, pai do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL). Gustavo Freitas Macedo integra o grupo do lobista Rubens de Oliveira, que esteve no gabinete de Lira em Brasília dois meses antes de os recursos que estavam bloqueados começarem a ser liberados. Com a decisão, a cidade que recebia R$ 237 mil de royalties por estar na zona de produção de petróleo passou a ganhar R$ 14,5 milhões mesmo sem produzir nada de petróleo.

Biu Lira, pai do presidente da Cãmara, Arhur Lira, é prefeito de Barra de São Miguel, em Alagoas Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

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Em 24 de novembro de 2021, o lobista entrou na Câmara às 11h53 informando que iria à presidência da Casa para um encontro com o deputado, conforme registros oficiais do Congresso. Àquela época, o município alagoano tinha uma decisão favorável do TRF-1, mas ainda não havia recebido os pagamentos.

Rubens de Oliveira atua convencendo prefeitos a contratar escritórios individuais de advocacia controlados por ele para reivindicar, na Justiça Federal de Brasília, o direito a altas parcelas de compensação financeira com royalties de petróleo. Em troca, o grupo ganha 20% de tudo o que as cidades arrecadam a partir das decisões judiciais, ainda que as sentenças sejam derrubadas depois.

Procurado, Oliveira diz ter conversado com Arthur Lira, na Câmara, sobre “consórcios que os municípios criam para poderem atuar no mercado de uma forma mais justa”. Ele afirma que é representante de prefeituras alagoanas que se juntam para participar de licitações, “digamos assim, para construção civil, para medicamentos, coisas nesse sentido”. E nega trabalhar no mercado de royalties e petróleo, contrariando o que ele mesmo divulga nas redes sociais. Lira pediu mais prazo para responder à reportagem, mas depois preferiu não se manifestar oficialmente.

O critério de “confrontante” com vizinho produtor para pagamentos maiores de royalties, argumento usado pelo advogado Gustavo Freitas Macedo do grupo de Rubens de Oliveira, não existe na legislação brasileira. A condição, contudo, foi aceita pelo desembargador Carlos Augusto Pires Brandão, após recurso ao Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1), mesmo sob duros protestos da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP).

O órgão alegava que os argumentos do advogado Gustavo Freitas Macedo, contratado sem licitação pelo prefeito Biu de Lira, “carecem de suporte fático, técnico ou legal”, pois “manipulam e distorcem” o que está previsto em lei para apresentar “inverdades” à Justiça.

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A legislação do petróleo prevê repasses para cidades não produtoras localizadas em áreas de produção, mas não dá condições especiais para cidades “confrontantes” com municípios produtores. O termo explorado pelo advogado só é utilizado no setor para casos bem específicos, de produção marítima, conforme estipulado nas leis 7.525/1986 e 7.990/1989 e no decreto 1/1991.

Só têm condições especiais os “municípios confrontantes com poços marítimos” e os “confrontantes com áreas de campos produtores marítimos”. Não é o caso de Barra de São Miguel. Em nota ao Estadão, a ANP avaliou que “o Judiciário foi levado ao erro”.

Antes de recorrer ao TRF-1, Gustavo Macedo havia perdido na 1ª instância. O juiz Frederico Botelho de Barros Viana, da 4ª Vara Federal Cível do DF, negou o pedido de liminar, em 27 de agosto de 2021, por avaliar que os fatos narrados necessitavam de “maior esclarecimento”. O recurso ao tribunal foi apresentado em 8 de setembro de 2021. O desembargador Carlos Augusto Pires Brandão decidiu favoravelmente sete dias depois.

“Defiro o pedido de antecipação dos efeitos da tutela recursal formulada para determinar que a agravada (ANP) inclua o município de Barra de São Miguel no rol de beneficiários dos royalties na condição de confrontante. Deverá a Agência Nacional do Petróleo proceder aos cálculos”, diz a decisão.

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A inclusão, porém, levou quase quatro meses para ser cumprida. A agência informou duas vezes a Pires Brandão que não poderia alterar as parcelas com base no critério criado pelo advogado, uma vez que o parâmetro “confrontante com município produtor” não existe na lei. Portanto, não seria possível calcular as novas alíquotas e percentuais.

Em 31 de janeiro de 2022, Pires Brandão deu a palavra final. Ele determinou que, em 72 horas, a ANP incluísse Barra de São Miguel no “no rol de beneficiários dos royalties na condição de confrontante, utilizando-se os mesmos parâmetros da condição de detentor de instalações marítimas e/ou terrestres de embarque e desembarque de petróleo e gás natural”. Barra de São Miguel não tem essas estruturas em seu território.

Antes da ordem judicial, o município recebia um valor baixo com royalties, pois atendia apenas a um critério previsto em lei para municípios não produtores. Entre 2018 e 2021, a cidade obtinha, no máximo, R$ 237 mil por ano. Com a decisão, a cidade foi enquadrada em outro parâmetro da divisão e aumentou seus ganhos. De 2022 a junho deste ano, já arrecadou R$ 14,5 milhões com royalties.

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Em um documento interno, obtido pelo Estadão, a ANP registrou que a cidade de Lira receberia royalties “em completa deturpação da vontade do legislador”.

“Alertamos à PRG (Procuradoria-Geral da agência) para a excepcional gravidade desta decisão judicial, que pode se transformar num divisor de águas potencialmente catastrófico para a distribuição da parcela dos royalties destinada aos municípios detentores de instalações de embarque e desembarque de petróleo e gás natural”, destacou.

Em fevereiro de 2022, Barra de São Miguel começou a receber a “bolada”. Naquele mês, o município de Lira recebeu uma parcela de R$ 3,9 milhões em valores retroativos. O repasse de valores impactou outras cidades, uma vez que os pagamentos aos beneficiários dos royalties são divididos a partir de um mesmo fundo. Cada vez que um município entra no rateio, os outros passam a receber menos do que poderiam. Para Barra de São Miguel ganhar, outras 270 cidades, como Macaé e Campos dos Goytacazes (RJ), perderam.

Em junho deste ano, o Tesouro Nacional distribuiu mais de R$ 4,1 bilhões em royalties a Estados e municípios. Barra de São Miguel faturou R$ 663 mil naquele mês. O valor é próximo àquele pago à cidade de São Miguel dos Campos, um dos maiores produtores de Alagoas, que obteve R$ 989 mil no mesmo período.

A legislação brasileira determina que a União, os Estados e os municípios beneficiários dos royalties invistam os valores em energia, pavimentação, água, irrigação, meio ambiente, saneamento, educação e saúde. Barra de São Miguel usou R$ 3,9 milhões para honorários advocatícios a um dos advogados ligados ao lobista, entre pagamentos e reserva de caixa.

Sede de escritório fica na fronteira com a Argentina

Gustavo Freitas Macedo é o único advogado de um escritório próprio localizado em Três de Maio (RS), na fronteira com a Argentina. O contrato fechado por Biu de Lira, em agosto de 2021, prevê que o advogado receba 20% de todos os royalties obtidos pela prefeitura com a decisão judicial.

O escritório do advogado foi registrado em fevereiro de 2021 junto a Receita Federal – seis meses antes da assinatura do contrato com Barra de São Miguel. Macedo informou ao Fisco que sua banca tem um capital social de R$ 1 mil. O acordo entre o município e o advogado foi firmado sem licitação. A prefeitura afastou a necessidade de abrir concorrência entre escritórios de advocacia por causa da “notória especialização” de Gustavo Macedo. Procurado pelo Estadão, ele não quis dar declarações.

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Antes de começar a apresentar ações que reivindicam repasses de royalties para prefeituras, Macedo atuava como criminalista na ação penal a que Rubens Machado de Oliveira responde na Justiça Federal do Rio Grande do Sul. O lobista, condenado por estelionato, é o articulador do mercado de incremento artificial de receitas de royalties por prefeituras, como revelou o Estadão.

O TRF-1 informou que “não haverá manifestação por parte dos magistrados citados”. A Advocacia-Geral da União (AGU), que representa a ANP na Justiça, se manifestou sobre as informações levantadas pela reportagem. Em nota, o órgão afirmou que se tratam de “decisões proferidas sem rigor técnico” que estabelecem “critérios criados judicialmente”.

“Quando um município que legalmente não tem direito a royalties passa a recebê-los, isso gera um efeito cascata bastante deletério, pois reduz o montante a ser repassado àqueles que legalmente têm direito a receber”, destacou a nota.

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