PUBLICIDADE

TV Estatal exalta Bolsonaro em transmissão de jogo; analistas veem ataque à impessoalidade

A pedido do governo, Confederação Brasileira de Futebol fez intermediação com federação peruana e TV Brasil foi o único canal aberto a transmitir o jogo

PUBLICIDADE

Foto do author Daniel  Weterman
Foto do author Marcio Dolzan
Por Daniel Weterman e Marcio Dolzan
Atualização:

BRASÍLIA e RIO – Os elogios ao presidente Jair Bolsonaro durante o jogo entre o Brasil e o Peru, transmitido nesta terça-feira, 13, pela TV Brasil, não apenas reacenderam a disputa entre aliados do Palácio do Planalto e oposição como podem configurar crime de responsabilidade ou até improbidade administrativa por parte dos gestores da emissora estatal. Antes mesmo da vitória do Brasil, por 4 a 2, os agrados a Bolsonaro começaram, o que, na avaliação de advogados ouvidos pelo Estadão/Broadcast, afronta o princípio da impessoalidade previsto na Constituição, que proíbe promoção pessoal de agente público em programas oficiais.

O narrador da partida, André Marques, mandou “abraço especial” para Bolsonaro no primeiro tempo e no segundo tempo. A pedido do governo, a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) fez a intermediação com a federação peruana e a TV Brasil foi o único canal aberto a transmitir o jogo. 

Gol de Neymar durante o jogo contra o Peru transmitido pela TV Brasil Foto: Daniel Apuy/EFE

PUBLICIDADE

No intervalo, houve repercussão da sanção do projeto que mudou as regras da Carteira Nacional de Habilitação (CNH) e também da audiência pública na qual o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, disse no Senado que o governo é responsável por apenas 6% da área do Pantanal.

“Pela Constituição, a publicidade oficial deve ter caráter educativo, informativo e social. Ou seja, não pode ter promoção do agente público ou de qualquer outro servidor, como o presidente ou um ministro”, afirmou o advogado Thiago Lima Breus, professor adjunto de Direito Administrativo e Gestão Pública da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Na sua avaliação, Bolsonaro pode ser acusado de crime de responsabilidade – caso que pode originar um pedido de impeachment, por exemplo. Os gestores da TV Brasil, por sua vez, correm o risco de responder por improbidade administrativa.

As negociações para a transmissão envolveram o secretário executivo do Ministério das Comunicações, Fábio Wajngarten, e o secretário-geral da CBF, Walter Feldman. “Essa troca de favores entre a TV pública e a CBF, da forma como pareceu ser feita, viola o princípio republicano”, disse Breus, que também é sócio da VG&P Advogados.

Fábio Wajngarten estava na Secom desde abril de 2019, quando substituiu o publicitário Floriano Amorim. Foto: DIDA SAMPAIO/ESTADÃO

A Justiça já puniu agentes públicos por uso da comunicação oficial para autopromoção. Um dos casos envolveu o ex-ministro e ex-governador do Rio Wellington Moreira Franco. Em 1998, ele foi condenado a ressarcir R$ 400 mil ao Estado por utilizar a imprensa oficial para imprimir um livro sobre sua gestão. No entendimento do Judiciário, o caso configurou promoção pessoal do ex-governador e colegas de partido. A decisão foi mantida, à época, pelo Supremo Tribunal Federal (STF).

Em 2006, o deputado Celso Maldaner (MDB-SC) foi condenado a pagar uma multa por ter distribuído propaganda oficial em encarte de jornais quando era secretário de Desenvolvimento Regional de Maravilha (SC). A Justiça entendeu que a divulgação dos trabalhos da pasta se transformou em promoção pessoal.

Publicidade

“O Supremo já analisou o artigo 37 da Constituição (princípio da impessoalidade). Esses julgamentos dizem respeito à violação do caráter educativo, informativo e de orientação social. O Supremo tem uma jurisprudência dizendo que esse caráter é incompatível com a menção de nomes, símbolos ou imagens”, comentou Breus, ao observar que o próprio manual de Jornalismo da EBC, responsável pela TV Brasil, obriga os profissionais da emissora a desenvolver uma linguagem apartidária e impessoal.

A transmissão do jogo entre Brasil e Peru foi elogiada por governistas e muitos destacaram os picos de audiência da emissora que o chefe do Planalto já prometeu extinguir ou privatizar. Não faltaram, porém, críticas da oposição, que viu um tom eleitoreiro na exibição da partida.

No segundo tempo, por exemplo, o narrador voltou a fazer uma saudação oficial ao governo e ainda leu uma nota. “Em nome da Secretaria Especial de Comunicação Social da Empresa Brasil de Comunicação e do secretário Fábio Wajngarten, agradecemos à CBF, nas pessoas do presidente Rogério Caboclo, do secretário-geral Walter Feldman e do diretor Eduardo Zerbini. E um abraço especial também ao presidente Jair Bolsonaro, que está assistindo ao jogo”.

Repercussão

No Twitter, o deputado Kim Kataguiri (DEM-SP) usou de ironia para comentar a partida. “Jogo da seleção passando no canal estatal. Narrador mandando abraço pro presidente. No intervalo, notícias do governo. Não, você não está na Coreia do Norte, é o Brasil mesmo”, escreveu ele.

Filho do presidente, o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) destacou os picos de audiência que a emissora pública recebeu. Na imagem compartilhada pelo deputado, a TV Brasil tinha 12,8% do total da audiência em Brasília às 22h12, na frente da Record (3,6%) e atrás da Globo (23%), líder dos canais abertos. “Se @tvbrasilgov não tivesse sido sagaz e fechado a transmissão de Peru x Brasil ficaríamos sem ver esse jogo em tv aberta”, escreveu Eduardo no Twitter.

A Kantar Ibope Media, que faz a medição, confirmou os números publicados pelo deputado. Além disso, divulgou que a transmissão do jogo pela TV Brasil registrou uma média de audiência de 6,59 pontos. Em Brasília, o índice representa aproximadamente 66.284 mil televisores ligados na partida. 

Publicidade

A oposição, por sua vez, atacou a posição da emissora pública. “No dia em que Carol Solberg é proibida de se manifestar politicamente, a transmissão do jogo da seleção na TV Brasil manda um abraço pro Bolsonaro e no ‘show do intervalo’ divulga os esforços do Salles pra salvar o Pantanal. Dia sombrio para o esporte brasileiro”, comentou o ex-deputado Chico Alencar (PSOL-RJ), candidato a vereador. Foi uma referência ao caso da jogadora de vôlei punida pelo Superior Tribunal de Justiça Desportivo por ter gritado “Fora, Bolsonaro”, durante entrevista ao vivo, e também às declarações de Salles no Senado.

Ao ser eleito em 2018, Bolsonaro prometeu privatizar ou mesmo extinguir o canal oficial do governo – apelidado de ‘TV do Lula’ por gastar verbas públicas para uma audiência pequena. Nas redes sociais, internautas compartilharam vídeos com declarações do presidente sobre o assunto. “E tem gente que diz que a transmissão do jogo foi ‘de graça’. Nada disso. Foi você que pagou, para variar”, publicou o deputado estadual Daniel José (Novo-SP).

Negociação

As negociações para que a TV Brasil transmitisse a partida entre Brasil e Peru envolveram o secretário executivo do Ministério das Comunicações, Fábio Wajngarten, que ligou para o secretário-geral da CBF, Walter Feldman. Após o governo federal fazer o pedido à CBF para a transmissão, a resposta oficial foi que a entidade não tinha os direitos do jogo, que pertenciam à Federação Peruana de Futebol, por meio de sua representante, a GolTV Peru.

A CBF, no entanto, atendeu ao pedido do governo e abriu negociação direta com a Federação Peruana. Restando pouco mais de uma hora para o início da partida, a entidade, então, conseguiu a liberação dos direitos desde que o jogo fosse transmitido exclusivamente por uma TV pública e também pelo site oficial da entidade. A princípio, o jogo seria transmitido apenas pelo sistema de pay-per-view EI Plus, da Turner, que acertou a compra dos direitos de transmissão das duas primeiras rodadas das Eliminatórias Sul-Americanas para a Copa do Mundo do Catar.

A Globo tem o direito de transmitir os jogos das seleções brasileira e argentina como mandantes nas Eliminatórias e não chegou a um acordo para a partida de terça-feira contra o Peru. A polêmica sobre os direitos de transmissão se dá pelo fato de a Fifa ter alterado a forma de negociação. Antes, o interessado em passar as partidas acertava a compra dos direitos com os organizadores da competição. Agora não é mais assim. O canal precisa negociar diretamente com cada federação nacional.

Três perguntas para: Eugênio Bucci, professor da ECA-USP

Publicidade

Eugênio Bucci,é professor da ECA-USP Foto: Amanda Perobelli/ Estadão

O governo já prometeu extinguir e privatizar a TV Brasil, que ontem foi usada para exaltar o presidente. Como o senhor vê esta contradição?

Quando fala bem do seu governo, a TV estatal não é execrada pela Presidência. Este é um governo de tendências ultraconservadores e que se inspira direta ou veladamente em modelos autoritários de extrema-direita. É uma junção de forças que acredita muito na propaganda, que a vê como uma usina da ideologia. Assim, um equipamento estatal nos moldes da EBC é um presente. O governo vai tentar se beneficiar ao máximo dela. O uso indevido da TV estatal para fazer propaganda está no DNA do autoritarismo.

O que pensa sobre o cumprimentos e agradecimentos ao presidente que foram ao ar? É correto?

Não é correto que numa emissora estatal se faça adulação para prestigiar o presidente da República, assim como não é correto nem ético o uso de qualquer equipamento público para favorecer a imagem pessoal de um funcionário público. O Estado tem dever de impessoalidade. Por que vamos aceitar que uma instituição dedicada à comunicação, mas que é pública, não seja impessoal? Além do mais, é uma situação atípica e mal explicada que o jogo tenha sido transmitido às pressas por uma instituição estatal. Me faz lembrar o peronismo kirchnerista na Argentina e seu “Fútbol para todos”.

Em quê o uso da TV estatal por parte de Bolsonaro contribui ou atrapalha nos debates sobre comunicação pública?

O uso que o governo federal vem fazendo dos equipamentos públicos de comunicação descaracteriza a razão de ser da instituição pública de comunicação social. Todas as democracias dispõem de equipamentos públicos de comunicação não comerciais, com regime de gestão independente, não submissos ao governo. Essas instituições prestam serviço essencial que atende ao direito à comunicação e à informação. Isso é normal. No Brasil, os equipamentos não têm tradição democrática.

Três perguntas para: Roberto Romano, professor da Unicamp

Publicidade

Roberto Romano, professor de Ética e Filosofia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Foto: Amanda Perobelli/Estadão

O governo já prometeu extinguir e privatizar a TV Brasil, que ontem foi usada para exaltar o presidente. Como o senhor vê esta contradição?

Este governo prometeu muitas coisas. A maioria delas o seu titular não tinha, não tem nem terá condições de cumprir. Falta-lhe todo compromisso com a fé pública , a famosa accountability. Além disso o atual presidente possui todas as marcas de um egocrata: só aceita a bajulação irrestrita . A prevaricação ( é disso que se trata) no uso de um meio público de informações, mesmo esportivo, segue a linha geral de uma política autoritária , aliás muito comum no Brasil . De Getúlio Vargas aos militares no poder imposto em 1964, muitos jornalistas se prestaram ao papel de empregados do governante, não de comunicadores que devem servir ao público de todos os partidos e ideologias.  

O que pensa sobre o cumprimentos e agradecimentos ao presidente que foram ao ar? É correto?

A bajulação na mídia, sobretudo naquela ligada aos esportes serve para desnaturalizar o próprio esporte, dele fazendo algo próprio de facções, desacreditanndo o aspecto universal. Assim, é um labor anti ético e bárbaro. 

Em quê o uso da TV estatal por parte de Bolsonaro contribui ou atrapalha nos debates sobre comunicação pública?

O esporte tem sua ética própria. Dele fazer instrumento político ( é o que ocorreu na transmissão em pauta) significa destruir sua ética. No esporte não existem governados e governantes, poderosos ou fracos, mas serem humanos que dão o melhor de si para aprimorar seu corpo e o de seus semelhantes, sem questionar suas crenças ou filiações políticas. Um jornalista que louva governantes em seus programas não faz tarefa de jornalismo, mas de propaganda barata. /COLABOROU MATHEUS LARA

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.