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Vai faltar recurso para cidade que tem direito, alertam especialistas sobre esquema em royalties

Reportagem do ‘Estadão’ revelou que desembargadores do TRF-1 mandaram pagar royalties para cidades que não produzem petróleo. Um dos pedidos atendidos cita até a Bíblia. “Se tira de um lugar, vai faltar para alguém que obedeça critérios”, disse o ex-diretor-geral da Agência Nacional do Petróleo (ANP), David Zylbersztajn

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Foto do author Vinícius Valfré
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Foto do author Daniel  Weterman
Por Vinícius Valfré , Julia Affonso e Daniel Weterman
Atualização:

BRASÍLIA - As decisões judiciais que garantiram pagamentos milionários de royalties de petróleos a prefeituras que não produzem uma gota do óleo tiram dinheiro de cidades que, pela lei, têm direito a receber os recursos como compensação pela exploração de recursos finitos. Como revelou o Estadão, três desembargadores do TRF-1 deram decisões com base em pedidos genéricos e com dados falsos.

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Numa das ações, o advogado escreveu: “A Bíblia é uma só, mas quantas interpretações diferentes temos para ela no mundo inteiro? São diversas”. Assim, conseguiu convencer o desembargador Carlos Augusto Pires Brandão a liberar R$ 15,2 milhões para Nhamundá (AM), cidade que não tem petróleo. Procurado, o magistrado não se manifestou.

Os principais especialistas em petróleo e em administração pública do País dizem que os recursos devem ser distribuídos com base em critérios técnicos estabelecidos e que as receitas extraordinárias devem ser destinadas não para medidas circunstanciais, mas para projetos de longo prazo. As verbas, porém, acabam sendo usadas para contratar servidores sem concurso público e pagar honorários milionários a advogados contratados sem licitação e não para melhorar a vida das pessoas.

Ex-diretor-geral da Agência Nacional do Petróleo (ANP), David Zylbersztajn afirma que questionamentos aos critérios e ajustes são legítimos, mas alegações que fogem totalmente do que está expresso em leis e decretos desestabilizam o sistema.

Se alguém vai à Justiça, parece que ele vai ganhar e todo mundo continua ganhando. Não é. Isso desestabiliza o sistema como um todo porque o dinheiro não aumenta. Se tira de um lugar, vai faltar para alguém que obedeça critérios. Pode-se até discutir critérios, fazer correções. Mas quando se foge totalmente deles a coisa fica complicada”

David Zylbersztajn, ex-diretor da ANP

Os royalties são pagos a título de compensação financeira, pelas empresas concessionárias da exploração. Na teoria, os recursos pagos a Estados e municípios deveriam ser direcionados a ações que amenizem impactos sociais e ambientais e encaminhem planos para o período pós-petróleo.

Nas mais de 50 ações judiciais ajuizadas pelo grupo liderado pelo grupo do lobista Rubens de Oliveira identificado pelo Estadão, os municípios não citam projetos estruturantes quando justificam interesse nos royalties. Em vez disso, falam em demandas do dia a dia como as causadas pela “pandemia de covid-19″ e até “sequelas de enchente no Estado”. Uma análise da aplicação dos recursos pelas prefeituras beneficiadas por liminares do TRF-1 mostra que o dinheiro acaba sendo totalmente desviado para outras finalidades.

A economista Carla Beni, professora dos MBAs da FGV, destaca que os campos de produção de petróleo duram até três décadas e as ações deveriam mirar o futuro.

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O ponto mais importante é que eles trabalhem na diversificação da matriz e dos serviços. Aquele município não pode viver em função de um poço que vai se esgotar. É necessário um planejamento estratégico de longo prazo”

Carla Beni, professora dos MBAs da FGV

Em geral, preocupações eleitorais e demandas de curto prazo ditam o uso dos recursos. Coordenador do Centro de Gestão e Políticas Públicas do Insper, o professor André Marques salienta que receitas de royalties podem ser “bomba relógio” ou oportunidades, a depender do gestor.

Infelizmente, muitos municípios acabam convertendo a receita em despesa corrente. O Estado do Rio fez muito isso. Em momentos de ‘boom’, com receita maior, dão aumento para várias categorias, por exemplo. Esse aumento fica. E quando o recurso reduz, por qualquer motivo, fica uma despesa que não pode ser reduzida. Se o gestor não consegue fazer uma boa gestão do recurso, isso pode ser uma ‘bomba relógio’”

André Marques, professor e coordenador do Centrão de Gestão e Políticas Públicas do Insper

Consultor tributário e ex-secretário da Receita Federal, Everardo Maciel afirma que casos como o revelado pelo Estadão são uma evidência da “falta de federalismo fiscal” no Brasil. Ele destaca que a criação e a ampliação do sistema de royalties estiveram, ao longo da História, atrelados a motivações políticas.

Foi assim após a criação da Petrobras, nos anos 1950, quando Getúlio Vargas buscava apoio dos Estados, e também a partir dos anos 1980, com a exploração no mar e a necessidade de socorrer o Rio de Janeiro de problemas financeiros. Agora, rediscutir o mecanismo para corrigir inconsistências, como a das cidades que recebem fortunas e não têm com o que gastar, virou algo quase impossível num momento em que o país se limita a falar do que chama de “generalidades reluzentes”, diz ele. Para Maciel, seria necessário discutir a partilha de rendas públicas como um todo.

Qualquer critério é arbitrário, mas isso já passou a constituir uma fonte que não pode ser dispensada para aqueles que são beneficiados. Se fizer isso, produz uma catástrofe. Teríamos que tratar da partilha das rendas públicas como um todo, tratar do todo. Se não, acerta um e desacerta os outros”

Everardo Maciel, ex-secretário da Receita Federal

A briga pela mudança de critérios de distribuição é uma pauta do presidente da Confederação Nacional dos Municípios, Paulo Ziulkoski. A entidade é crítica da concentração de repasses para poucas cidades e reclama da paralisação de um julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF) há dez anos.

É uma receita que cresce e é do povo brasileiro, não pode ser de um ou dois. No Brasil tem toda uma distorção. O critério melhor é pela população. É um recurso fundamental porque financia políticas públicas, dá estabilidade à gestão municipal. Mas em vez de ser diluído está concentrado”

Paulo Ziulkoski, presidente da CNM

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