Podas ‘mutiladoras’ e concreto: botânico lista ‘festival de erros’ por trás de árvores caídas em SP

Ricardo Cardim aponta que Prefeitura não faz manutenção periódica e que ações remetem aos anos 70. Árvores acabam adoecendo e caindo, explica. Gestão municipal diz coordenar ações de manejo

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Foto do author Giovanna Castro
Atualização:
Foto: Alex Silva/Estadão
Entrevista comRicardo CardimBotânico e paisagista

A cidade de São Paulo registrou na quarta e quinta-feira, 343 chamados de ocorrências de queda de árvore na capital, de acordo com a Defesa Civil, durante as fortes chuvas que atingiram a região metropolitana. Uma pessoa morreu na Avenida Senador Queiroz, no centro da capital, após seu carro ser atingido por uma.

Nesta quinta, 13, diversas avenidas da capital amanheceram com árvores caídas, entre elas, a Avenida Sumaré, uma das principais e mais arborizadas na zona oeste. Até mesmo a terceira árvore mais antiga da capital - um chichá de aproximadamente 200 anos -, que ficava no Largo do Arouche, na República, despencou.

Não é a primeira vez que eventos como este ocorrem na cidade de São Paulo. Nos últimos anos, a intensificação das tempestades por conta das mudanças climáticas tem causado recorde de quedas de árvores.

Árvore centenária caiu no Largo do Arouche em cima de um carro nesta quarta-feira, 12. Foto: Felipe Rau/Estadão


A Prefeitura afirma que faz podas frequentes nas árvores, diz ter diminuído em 30% o estoque de intervenções pendentes e acrescenta que as quedas se dão pela intensidade das chuvas e dos ventos. Entretanto, o botânico e paisagista Ricardo Cardim diz que não dá para culpar só o clima.

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“A cidade de São Paulo ainda não tem manutenção periódica das suas árvores. Basta uma volta em qualquer rua urbana para você ver um festival de árvores com cimento afogando tronco, muretas, podas mutiladoras, cupins, espécies equivocadas, um festival de erros e problemas”, diz o especialista.

Grandes quedas de árvores durante chuvas têm se tornado comum na capital. Foto: Felipe Rau/Estadão

Segundo ele, as podas realizadas pelo Município são, em grande parte, mutiladoras. Visam apenas não atingir a rede aérea de energia e acabam fragilizando ainda mais as árvores, aumentando as chances de queda.

“Esse negócio de poda tem que cair por terra”, afirma Cardim. “São feitas em galhos grandes que a árvore não consegue cicatrizar”.

Em entrevista ao Estadão, o botânico defendeu uma ação ampla de manutenção das árvores da cidade e plantio de novas, grandes, formando corredores verdes capazes de gerar umidade, reduzir o efeito de ilhas de calor e com maior resiliência às fortes chuvas.

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Em nota, a Prefeitura de SP afirmou que coordena ações de manejo de árvores na cidade ao longo de todo o ano. A gestão municipal também alega que a Subprefeitura Sé tem um mapeamento de todas as 52 mil árvores existentes nos 25 bairros e oito distritos que administra. “Todas elas são vistoriadas a cada dois anos e possuem laudo técnico.”

A quantidade de quedas de árvore que São Paulo está enfrentando é compatível com o tanto de chuva ou há outros favores envolvidos?

Em primeiro lugar, as medidas tomadas pela Prefeitura em relação às árvores remetem aos anos 1970. A cidade de São Paulo ainda não tem manutenção periódica das suas árvores. Basta uma volta em qualquer rua urbana para você ver um festival de árvores com cimento afogando tronco, muretas, podas mutiladoras, cupins, espécies equivocadas, um festival de erros e problemas que poderiam ser resolvidos com uma simples manutenção periódica. Isso não existe.

Segundo, que uma coisa que ninguém está falando é que essas tempestades extremas se devem principalmente à falta de árvores na cidade de São Paulo - é o que a gente chama de ilhas de calor. Essas ilhas de calor levam a extremos climáticos, como o que a gente assistiu ontem. Estamos muito longe, já, do tempo da “São Paulo da Garoa”, quando existia um clima ameno, porque São Paulo ainda tinha muito verde. Hoje, a cidade é árida por escolha das gestões públicas.

Ao mesmo tempo, não existe uma lei clara que coloca a árvore como uma obrigação da prefeitura, assim como a calçada deveria ser e como é com o asfalto, com a eletrificação, com a água encanada.

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O que deveria ser feito pela Prefeitura?

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A gente poderia plantar árvores de grande porte, adequadas e bem cuidadas nas vagas de carro, por exemplo. Claro, não em todas, mas reorganizando as vagas de forma a construir redes amplas de arborização na cidade, diminuir as ilhas de calor, aumentar a umidade do ar e regular o clima, trazendo chuvas mais amenas e resiliência climática.

Mas o que a gente percebe é que a arborização sequer foi tocada como tema das eleições do ano passado. Ninguém fala em árvore, a árvore não dá voto e no final a má fama (por conta dos transtornos em tempestades) fica com a árvore, como se ela fosse culpada, quando na verdade ela é a única que poderia prevenir essas tragédias e tempestades extremas que estamos vivendo cotidianamente em São Paulo.

Eu acho que São Paulo, por exemplo, tinha que ter uma secretaria exclusiva para plantio e manutenção de árvores, com equipes próprias, com tecnologia, com investimento a altura. Hoje são vários os órgãos que cuidam disso: Subprefeituras, Secretaria do Verde e Meio Ambiente, Enel. Não dá mais. A gente precisa tratar isso como uma questão prioritária dentro de uma cidade como São Paulo.

Sempre que o tema surge, a Prefeitura cita as podas de árvore que faz. Essas podas ajudam a reduzir a queda de árvores em algum nível?

Esse negócio de poda tem que cair por terra. Muitas dessas podas são mutiladoras, porque são feitas em galhos grandes que a árvore não consegue cicatrizar. A árvore acaba adoecendo e cai depois de alguns anos, por causa da poda. Uma poda correta tem que ser feita com os galhos jovens, com periodicidade, com acompanhamento técnico dessa árvore ao longo dos anos, não da forma como é feita, uma vez na vida, quando alguém liga reclamando. É um absurdo.

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Quando a Prefeitura diz “estamos fazendo tantas milhares de podas”, para mim, é como se eu escutasse “estamos adoentando tantas milhares de árvores para cair daqui a pouco”. A gente precisa, em São Paulo, de um órgão específico para cuidar das árvores, com equipes técnicas, com equipamentos técnicos, com investimento adequado. Precisamos de um inventário da área de arborização da cidade. Até hoje, a cidade não sabe quantas são, quais são e como estão as árvores da cidade. Como é que você vai administrar uma despensa de uma casa, se você não sabe o que tem dentro dela?

Já passou do momento, não dá mais para ter esse tipo de resposta (focado apenas em poda de árvores) pelo poder público, (uma resposta) dos anos 1970.

Poda agressiva de árvores é criticada por Ricardo Cardim. Foto: Felipe Rau/Estadão

Que tipo de vegetação seria ideal para a cidade de São Paulo?

O ideal são árvores grandes, que têm em alta capacidade de diminuir a temperatura, de aumentar a umidade do ar, de filtrar a poluição, de segurar as enchentes. Elas devem ser plantadas em área permeável, sem muretas em volta, nas espécies adequadas para arborização urbana, com uma madeira resistente, flexível, com folhas de tamanho médio. Um exemplo é a cabreúva, a copaíba e o pau-viola, entre tantas outras espécies da Mata Atlântica, comprovadamente ideais para essa situação.

A cidade tem capacidade para implementar, hoje, um projeto amplo de plantio de novas árvores?

Precisamos fazer uma cidade como Berlim, na Alemanha, que é uma cidade de 6 milhões de habitantes que tem cuidados de investimento significativo na arborização urbana, com uma arborização que atravessa a cidade. E eu quero deixar claro que São Paulo não é uma cidade mais pobre que Berlim. São Paulo é uma cidade multimilionária que tem recursos para isso.

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Todas as ruas em Berlim formam túneis verdes. A gente precisa de túneis verdes na cidade de São Paulo. Sabe aquela a rua que tem uma copa do lado da outra, que protege o asfalto e o pedestre? É disso que a gente precisa na cidade. Esse conjunto inclusive fica mais coeso e mais resistente aos ventos fortes e ajuda a diminuir a chance de danos materiais para para as edificações.

Essa é uma ciência já declarada há mais de 20 anos. É que a gestão pública brasileira ainda não entendeu que a árvore não é enfeite. Ela é muito mais do que isso. A árvore é o que torna viável a vida no ambiente artificial como as grandes cidades. E agora com as mudanças climáticas globais e locais, não há mais desculpa para esse descaso e fingir que esse é um assunto menor. Esse assunto é tão importante quanto a eletrificação, a água encanada e os esgotos.

Isso é algo que eu considero uma visão míope. Por quê? Porque as pessoas reclamam quando algumas árvores são cortadas, mas elas não se mobilizam, não se manifestam, sobre as centenas de milhares que não são cuidadas na cidade, com as milhões que a gente poderia ter, novas, plantadas nas calçadas. A gente tem que parar de contar moedas, se preocupando somente com uma ou duas árvores que são retiradas da cidade - que, claro, são importantes, sem dúvida, mas enquanto a gente fica nessa discussão, a gente não cobra o poder público daquilo que ele precisa fazer, que é plantar centenas de milhares de árvores, grandes, novas, na cidade.

Precisamos cobrar que seja investido o dinheiro suficiente para cuidar das árvores existentes em toda a malha urbana. Existe um descaso histórico com as árvores nas cidades brasileiras e essas árvores acabam, por falta total de cuidado e planejamento, caindo, matando pessoas, gerando prejuízos materiais. As pessoas ficam com medo de árvores, ninguém quer ter árvore na frente da calçada por isso. Aí, começam a plantar um monte de árvore anã. São árvores pequenininhas que, mesmo adultas, não passam de 3 metros. Não fazem sombra, não servem de nada para a melhoria ambiental da cidade. Só servem para enfeitar os números de políticos no final do ano e agradar as companhias elétricas que, aí, não têm galhos passando sobre a fiação, que em primeiro lugar deveria estar enterrada.

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Então, é muito importante que a gente eduque a população para a importância das árvores, para que ela possa escolher melhores gestores públicos que realmente enfrente essa situação urgente.