O Supremo Tribunal Federal considerou inconstitucional as regras do Ministério da Saúde e da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) que proíbem “homens que fazem sexo com homens” de doarem sangue por um ano após a última relação sexual. O julgamento, que tramitava na Suprema Corte desde 2016, foi finalizado na noite desta sexta-feira, 8, com sete votos favoráveis à ação direta de inconstitucionalidade movida pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB).
Na semana passada, o STJ já havia atingido maioria favorável apenas à suspensão do período de 12 meses de abstinência sexual, mas não sobre a inconstitucionalidade total da restrição. Os votos favoráveis dos ministros Dias Toffoli e Cármen Lúcia foram entregues nesta sexta-feira, 8, e se somaram aos de Edson Fachin, relator do processo, Rosa Weber, Luís Roberto Barroso, Luiz Fux e Gilmar Mendes.
Os ministros Ricardo Lewandowski, Alexandre de Moraes, Marco Aurélio e Celso Mello divergiram do relator. Em seu voto, Moraes defendeu que o prazo de um ano de abstinência sexual por homens que se relacionam com homens fosse derrubado, mas sugeriu que o material coletado fosse armazenado pelo laboratório. Só depois de uma nova janela imunológica, ainda a ser definida pelo ministério, que a doação seria efetivada.
Lewandowski, por sua vez, defendeu que o STF “deve adotar uma postura autocontida diante de determinações das autoridades sanitárias quando estas forem embasadas em dados técnicos e científicos devidamente demonstrados". No texto, ele afirmou que há "valores distintos a ponderar, e igualmente respeitáveis: a saúde pública de um lado, e o postulado da dignidade humana e o princípio da não discriminação, de outro". Em seu entedimento, entretanto, a medida não lhe pareciam discriminatórias.
Na última sexta, 1º, Gilmar reconheceu a medida como discriminação e definiu a classificação de doadores por "grupos de risco" e não por "comportamento de risco" como um conceito "retrógrado e ultrapassado". "A meu ver, o risco elevado de os homens homossexuais/bissexuais contraírem doenças sexualmente transmissíveis decorre não do fato de serem homossexuais/bissexuais, mas de praticarem, em regra, certas condutas com maior perigo de infecção, como o sexo anal. Ocorre que essa conduta não é restrita aos homens homossexuais, sendo também praticada indistintamente por casais heterossexuais."
Nesta sexta, constava no site do Supremo Tribunal Federal o voto de Lewandowski como favorável ao parecer do relator. De acordo com o gabinete do ministro, o registro foi um erro de alimentação no sistema.
Tanto a portaria 158/2016 do Ministério da Saúde quanto a resolução 34/2014 da Anvisa foram feitas com base em recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS), que desaconselhou a doação de sangue por homens gays na década de 1980, durante o auge da epidemia do HIV/Aids. Em uma manifestação obtida pela Aliança Nacional LGBTI, que atuou no caso como amiga da Corte (amici curiae), a diretora-geral adjunta do departamento de Cobertura Sanitária Universal da OMS, Naoko Yamamoto, reconheceu que as diretrizes do órgão foram elaboradas em um momento quando as pesquisas sobre o risco nas transfusões de sangue ainda estavam evoluindo. No documento entregue ao STF, ela afirmou que, nos últimos anos, houve um avanço considerável com relação à coleta segura desses dados.
Com a pandemia do coronavírus, a Food and Drug Administration (FDA), agência reguladora de alimentos e drogas dos Estados Unidos, e o Centro de Controle de Doenças (CDC) a diminuírem o limite de tempo para doação por homens gays de 12 para três meses. A decisão foi publicada em 2 de abril, quando 2.700 unidades de sangue da Cruz Vermelha foram fechadas no país devido a preocupações com a aglomeração de pessoas em locais de trabalho.
Repercussão. O advogado Rafael Carneiro, do Carneiros e Dipp Advogados e representante do PSB na ação, comemorou a decisão do STF. "O STF entendeu que a orientação sexual do doador, por si só, não significa risco à qualidade do sangue. A decisão é um sopro de solidariedade neste momento tão delicado por que estamos passando”, declarou.
Bruna Benevides, secretária de articulação política da Associação Nacional de Travestis e Transexuis (Antra), afirmou que o novo entendimento da Suprema Corte, o qual também se extende para mulheres transexuais e travestis, é uma forma de diminuir estereótipos sobre pessoas transgêneras. "Isso é o ponto básico e fundamental desse processo. Em seguida, é importante porque agora também podemos ajudar nossos familiares, amigos e conhecidos que precisem, especialmente diante do grande desperdício de sangue gerado por essa proibição, e também pelo enfrentamento desse estigma que todas nós somos vetoras em potencial da transmissão do HIV".
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