Varíola dos macacos mostrou o que não aprendemos com a covid, diz brasileira da OMS

Virologista da UFRJ integra comitê que orientou diretor da OMS a declarar emergência em saúde da monkeypox

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Foto do author Leon Ferrari
Por Leon Ferrari
Atualização:
Foto: Arquivo Pessoal
Entrevista comClarissa Damasovirologista da UFRJ

No início de maio do ano passado, uma doença endêmica de países da África Ocidental e Central, a varíola dos macacos - depois nomeada de mpox - cruzou fronteiras e assustou o planeta, que temia uma pandemia dentro de outra pandemia. Em julho, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou que o surto era uma Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional (PHEIC, em inglês), assim como a covid-19 e, neste mês, a entidade retirou esse status de ambas as doenças.

A virologista brasileira Clarissa Damaso pesquisa os poxvírus, como o orthopoxvirus (gênero do vírus monkeypox). A cientista, do Laboratório de Biologia Molecular de Vírus da Federal do Rio (UFRJ), integrou o Comitê de Emergência que orientou Tedros Adhanom, diretor da OMS, sobre a doença.

Ao Estadão, ela destacou que o surto da varíola dos macacos mostrou o que não aprendemos com a covid, continuamos a distribuir vacinas e remédios de forma desigual, e ensinou que doenças negligenciadas, como a varíola dos macacos, são um risco ao planeta. “Não aprendemos a ter nossa fatia de responsabilidade em relação à humanidade. As pessoas não aprenderam que olhar pelo todo é você olhar para o seu próprio país.”

De um ano para cá, de acordo com dados da OMS, 87 mil casos e 140 mortes foram registrados em 111 países. Um segmento bastante específico, homens que fazem sexo com homens, que foram responsáveis por oito em cada dez (84,1%) infecções conhecidas. Clarissa destaca que o número de casos no mundo está baixo e que uma nova onda é pouco provável.

Tanto esses números quanto o perfil dos casos, contudo, podem conter distorções devido à subnotificação, destaca Clarissa. Isso porque a doença apresentou um quadro clínico diferente do que ocorria na África (mais brando) e também por causa do estigma, alguns países negaram a existência de casos e pessoas podem ter evitado buscar diagnóstico para não serem “confundidos”, “entre mil aspas”, comenta a pesquisadora, com a população LGBT.

Confira os principais trechos da entrevista:

Qual é o cenário atual da varíola dos macacos no Brasil e no mundo?

O número de casos diminuiu bastante desde o final do ano passado. Continua sim em algumas regiões tendo o que a gente chama de cauda longa da curva, a curva não findou, fica com aquele restinho de casos, baixos mas contínuos. Isso estava acontecendo em fevereiro na América Central e também México e foi uma das preocupações de ainda se manter um estado de emergência. Nas últimas semanas subiu (o número de caso) no Japão, mas nada que se compare ao que a gente teve na Europa, Estados Unidos e Brasil no meio do ano passado, é um número pequeno de casos.

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E no Brasil?

Caiu bastante. Eu não vou dizer que acabou, porque a gente continua de vez em quando tendo casos positivos. Não eliminou, mas diminuiu bastante.

Por que os casos crescem no Japão?

Não tenho informação nenhuma, mas acho que nada mudou no vírus, isso que é importante. Acho que talvez seja a epidemia ganhando sua vez em alguns países que antes estavam mais fechados.

E em relação ao número de mortes? O número de mortes foi acima do esperado?

Para monkeypox, o número de mortes foi alto. É meio difícil de comparar porque todos os dados que tínhamos eram de regiões da África no passado, e aí tem outras agravantes que é a questão do sistema de saúde. É diferente de você comparar número de mortes em países da Europa com países africanos. Foi um vírus do oeste da África, que é menos virulento, que saiu e veio ocasionando um surto desde final de abril e começo de maio do ano passado. É um vírus de baixa letalidade na África, mas a gente tem número elevado de mortes, que poderiam ter sido evitadas se a gente tivesse tido um controle melhor desde o começo. Acho que ninguém esperou que isso fosse ter uma disseminação tão continuada homem a homem.

Existe subnotificação?

Tem subnotificação sim, como teve desde o começo. O que acontece, a gente teve uma uma apresentação clínica muito diferente do que acontece na África. Na África, a maioria dos casos a doença causava pústulas pelo corpo todo, muito similar à varíola humana. O que a gente teve, tirando os casos em que tinha lesão genital e perianal, muitos casos eram poucas lesões no corpo, muito espaçadas tem, paciente que só teve uma lesão. Acho que esse foi um dos motivos que levou até aumentar a transmissão, porque a pessoa não se sentia mal e ela não estava com um corpo com muitas pústulas. Essa apresentação pouco usual levou a não se dar conta de que a pessoa estava infectada com monkeypox. Não sei quanto se tem de assintomáticos, a gente sabe que isso é possível, mas talvez tenha mais o que a gente chama de oligoassintomático, pessoas que tem sintomas muito brandos.

Homem espera na fila de imunização contra a monkeypox em Nova York Foto: Eduardo Munoz/Reuters - 15/07/2022

Essa subnotificação é grande?

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No momento de pico, acho que não foi pouca não. Atualmente, a gente não está com muita subnotificação não. Acho que o número de casos está baixo, porque realmente está baixo. Quando é subnotificação, a gente tem países com mais e países com menos. O que a gente está vendo é uma baixa no número de casos mundialmente.

Muito se falava se não se estigmatizar uma comunidade já estigmatizada, a LGBT. Acha que conseguimos lidar com a doença sem estigmatizar?

No Brasil, do meu ponto de vista, lidou-se bem. Acho que, no começo, o receio de não comentar e não alertar foi pior. Foi o que aconteceu, por exemplo, quando tivemos a Parada LGBT em São Paulo. Conseguiu-se fazer muito pouco alerta e a gente teve uma explosão do número de casos depois. Depois, foi se conscientizando todos os profissionais que trabalham e também as pessoas da comunidade em geral para alertar os seus próprios membros da comunidade, isso foi fundamental. Não sei em outros países. Acho que o Brasil ainda estigmatiza, mas tem países em que a situação é bem pior.

Em relação à percepção da sociedade, o surto foi ofuscado pela pandemia da covid?

Quando começou, que o número de casos foi explodindo até chegar em julho, vi as pessoas realmente querendo compreender e de certa forma assustadas pensando ‘vem uma outra pandemia’. Conforme a gente explicava que era uma doença branda na África, e, fiz as contas agora, tivemos 130 mortes e 87 mil casos, dá um número bem baixo de letalidade, 0,15%, se a gente compara com o covid, com milhões de mortes. tudo que vir as pessoas vão pensar que não é tão importante. Até certo ponto, acho interessante, porque não gosto de pânico. Por outro, fico preocupada das pessoas, quando for necessário, não tomarem as medidas protetivas, que foi o que aconteceu em muitos casos, e por isso a gente teve esse número aumentando. Depois, com a conscientização, foi caindo, em muitos países devido à vacinação e ao uso de terapia antiviral. Sinceramente, como pesquisadora, achei que mundialmente a gente ia ter uma distribuição melhor de vacina e de antivirais, e não tivemos. A gente repetiu os erros de covid. Fico preocupada realmente o quanto o mundo está aprendendo com as pandemias.

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Vacinação contra a varíola dos macacos em São Paulo; imunização contra doença só começou neste ano no Brasil Foto: Felipe Rau/Estadão - 22/03/2023

Pode falar um pouco mais sobre essa questão do aprendizado com a pandemia? O que não aprendemos?

A gente não aprendeu a ter nossa fatia de responsabilidade em relação à humanidade. Pandemia é a distribuição de um patógeno que alcança vários países causando doença, e quando você tem uma declaração de emergência internacional, é quando é um evento extraordinário que necessita de uma ação coordenada no mundo. A gente vê que, por exemplo, na pandemia de covid, temos países já chegando a não sei quantos reforços, enquanto tem outros países com 10% de cobertura vacinal. As pessoas não aprenderam que você olhar pelo todo é você olhar para o seu próprio país.

Se tivéssemos distribuído vacinas e remédios teríamos menos mortes?

Acho que sim. Isso é um achismo meu, não é uma certeza absoluta. Porque com um número pequeno de antivirais você tem que fazer escolhas. Para qual a população que você vai dar? Muitas vezes você vai dar para as pessoas que, obviamente, estão (com quadros) mais graves. Só que quando você tem um número maior, você pode dar com antecedência, antes que o caso chegue a ser grave. Mesmo com o número pequeno de mortes, muitas pessoas sofreram, e sofreram bastante.

No Brasil, recebemos doses da vacina no final do ano passado, mas começamos aplicar só neste. Isso prejudicou nosso combate à doença?

Agora, (a vacinação) é uma questão mais de prevenir para uma outra onda, não acredito muito (que tenha), mas se vier, proteger os profissionais de saúde e também para os casos que continuam ocorrendo. Eu acho que (as vacinas) deveriam ter chegado antes, seria o ideal, porque a gente conseguiria ter evitado alguns casos graves e mortes. Não sei por que atrasou. Foi uma pena.

Aproveitando que a senhora falou em novas ondas e que acha pouco provável. Por quê?

Com base na na na biologia do vírus, é um vírus que sofre muito pouca alteração. Depois, a própria varíola (humana) que era muito mais infecciosa e muito mais contagiosa, você tendo um estabelecimento de não ter contato próximo, você conseguia fazer o círculo de contenção em função de um caso. Covid é (causada por) um vírus de transmissão respiratória é mais complicado, monkeypox precisa ter contato, você não tem infecção (só) por duas pessoas estarem no mesmo quarto sem ter contato. Porém, se a gente continuar tendo casos poucos, esporádicos e com a clínica muito branda, a gente pode retomar isso futuramente, ter um pico. O vírus (também) não pode encontrar um reservatório animal. Isso é fundamental.

Por que a monkeypox não foi considerada uma pandemia pela OMS?

Não sei qual foi a razão de não se declarar uma pandemia. Talvez pela questão do número de casos e de que não foi uma infecção espalhada pela população toda, mas casos em grupos específicos. Não sei qual foi o critério usado. Tanto que continua se chamando de surto. Não acho que foi um surto, foi uma epidemia global quase pandêmica mesmo. Nas reuniões do comitê essa parte não é discutida, é discutida só se trata de uma PHEIC ou não.

Os países lidaram bem com o surto?

Acho que não, (porque) no começo, ficaram achando que não ia haver progressão. Alguns países lidaram muito bem e conseguiram controlar bem. Portugal e Espanha tiveram atitudes muito proativas desde o início. Aqui, no Brasil, tivemos uma resposta muito rápida do Ministério (da Saúde), em termos de diagnóstico. Fui contactada pelo ministério na primeira ou segunda semana de maio, estávamos com pouquíssimos casos no mundo, mas já alertando que iria escalar. Agora, outros países não, tem países que até hoje negam casos, mas assim o que você vê é que não é possível que não tenha casos. Claramente aqueles países que já tem leis muito restritas ante à população LGBT lidaram muito mal.

Com a baixa de casos, já podemos ‘baixar a guarda’?

Não pode baixar a guarda, mas não há necessidade de ninguém ficar num estado de hiperalerta. a doença existe, não foi eliminada, não houve eliminação em nenhum país. Normalmente, para dizer que a doença é eliminada a gente espera pelo menos dois anos. Quem suspeitar que tem (a doença) deve procurar diagnóstico e tomar as as precauções corretas.

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E qual é o principal sinal de alerta da doença? A pústula na pele?

(A pústula) É o sinal mais é o visível, porque os outros sintomas são muito comuns a de várias viroses.

A senhora gostaria de deixar uma mensagem final?

Não deixar por menos os aprendizados que a gente pode tirar de cada surto, epidemia ou pandemia. Não é porque não mata milhões que deixa de ser importante. É preciso tirar sempre as lições boas e tentar principalmente fazer prevenção. A monkeypox era um vírus negligenciado, porque se acreditava que era uma infecção da África. Todas as doenças que ocorrem na África, como Ebola, sempre foram negligenciados no resto do mundo, até o momento que elas saem. A gente não pode negligenciar. As coisas precisam ser mais bem cuidadas no mundo. Os vírus não tem fronteiras.

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