Kyoto quer que os turistas voltem, mas tem algumas sugestões

Com a suspensão de todas as restrições para o turismo no Japãodesde 11 de outubro, a cidade se prepara para ver sua rotina se transformar novamente

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Por Ben Dooley e Hisako Ueno

THE NEW YORK TIMES - Nos meses anteriores a março de 2020, os vendedores no mercado Nishiki de Kyoto muitas vezes desejavam o fim do fluxo aparentemente interminável de visitantes estrangeiros sedentos por selfies.

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“Não estávamos acostumados com turistas estrangeiros”, disse Nobuyuki Hatsuda, que lidera uma aliança comercial que promove a rua comercial do centro da cidade, onde os comerciantes vendem uma variedade estonteante de comidas tradicionais japonesas, cuidadosamente exibidas e embaladas.

O Nishiki tem sido um mercado ativo há muito tempo, e o desfile de visitantes – vasculhando as mercadorias meticulosamente organizadas, pechinchando com lojistas exaustos e bloqueando as vitrines com suas bagagens – interferiu no fluxo dos negócios diários, afastando os moradores, que há muito faziam compras na rua.

Mas aí veio a pandemia. Os turistas – junto com seu dinheiro – evaporaram e os vendedores mudaram de ideia, disse Hatsuda, que vende kamaboko, um bolinho de peixe geralmente formado por uma delicada massa em rosa e branco.

“Percebemos que não podemos escolher nossos clientes”, disse ele. O Japão mantinha os mais rígidos controles de fronteira de qualquer grande economia, logo depois da China. Desde o início de 2021, menos de 800 mil visitantes estrangeiros colocaram os pés no país. Enquanto outros países começavam a receber turistas de volta em números próximos aos picos pré-pandemia, o Japão ainda permitia apenas uma pequena quantidade de viajantes.

O país afrouxou as restrições a viagens de negócios e estudos na primavera, mas ainda limitava o turismo a viajantes em pacotes turísticos que estivessem dispostos a enfrentar um labirinto de burocracia.

Vista de Kyoto: cidade quer a volta do turismo, mas com moderação  Foto: Andrew Faulk/NYT

Isso, contudo, vai mudar em breve. O Japão retirou em 11 de outubro as restrições para viajantes estrangeiros visitarem o país, permitindo que os turistas viajem de forma independente. (Mesmo após a retomada normal das viagens, no entanto, é improvável que os visitantes chineses, que representaram mais de 30% do tráfego de entrada em 2019, retornem em grande número até que Pequim relaxe sua rígida política de “covid zero”.)

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À medida que o turismo retorna lentamente, Kyoto, assim como outros destinos turísticos famosos de todo o mundo, está tentando acomodar as multidões sem sacrificar a qualidade de vida daqueles que chamam a antiga capital de lar.

Na ausência de uma solução clara, o governo de Kyoto aposta em uma mudança de perspectiva: depois de anos promovendo a omotenashi – palavra japonesa que quer dizer “hospitalidade meticulosa” – agora está tentando dedicar mais tempo ao autocuidado.

“Kyoto não é uma cidade turística, é uma cidade que valoriza o turismo”, disse Daisaku Kadokawa, prefeito da cidade, em entrevista recente na prefeitura, vestindo o quimono formal que se tornou marca registrada durante seus quase 15 anos no cargo.

Popularidade crescente

Kyoto é sede de empresas mundialmente conhecidas, como Nintendo e Kyocera, e produziu mais vencedores do Prêmio Nobel nas ciências do que qualquer outra cidade do Japão. Mas, nos anos que antecederam a pandemia, tornou-se dependente da enxurrada de turistas que ficavam se esbarrando e fazendo barulho nas ruas.

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Partindo de uma base de cerca de 10 milhões em 2013, o número de visitantes estrangeiros mais que triplicou até o início da pandemia, segundo dados do governo. Quase um terço deles viajou para Kyoto, onde a indústria do turismo empregava um em cada cinco trabalhadores. Os impostos do setor representavam quase 13% da receita da cidade.

Mas os moradores logo se cansaram do que chamaram de “poluição turística”. As malas lotavam os corredores dos ônibus urbanos. Visitantes ansiosos assediavam as aprendizes de gueixa, chamadas maiko, para tirar fotos. E turistas perdidos batiam nas casas das pessoas à procura de seus Airbnbs.

Templo Kiyomizu, em Kyoto, famoso por sua bela arquitetura e pela vista da cidade  Foto: Andrew Faulk/NYT

As redes sociais moldaram o turismo na cidade. E não para melhor.

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Masutami Kawaguchi, que oferece tours privados em inglês pela cidade, disse que – antes da pandemia – os itinerários de seus clientes eram quase inteiramente determinados pelo Instagram. O turismo se concentrava em áreas famosamente pitorescas da cidade: as pessoas saiam do trem na estação de Kyoto e corriam para os dois ou três melhores locais para tirar fotos – os bambuzais de Arashiyama, os portões que serpenteiam a montanha atrás do santuário Fushimi Inari e o pavilhão dourado no templo Kinkauji – criando engarrafamentos e aglomeração nas áreas circundantes.

Os moradores de Kyoto, conhecidos por sua educação, começaram a expressar seu descontentamento com uma franqueza incomum.

Em Nishiki, apareceram placas advertindo os turistas a não comerem enquanto caminhavam, uma descortesia no Japão. Os compradores do bairro, cansados da aglomeração e da bagunça, começaram a ir aos supermercados, e alguns vendedores de longa data tiveram de fechar as portas.

Até os monges budistas perderam a calma.

No outono e na primavera, quando as ruas ficavam cheias de turistas boquiabertos com rajadas pirotécnicas de folhas de bordo e flores de cerejeira, “as pessoas não podiam nem sair de casa. A cidade ficava quase inabitável”, disse Kojo Nagasawa, secretário-geral da Federação Budista de Kyoto, que administra três dos templos mais famosos da cidade.

O grupo há muito pede moderação no desenvolvimento econômico de Kyoto. Em 1991, publicou um anúncio de página inteira no Times se opondo à construção de hotéis em arranha-céus, o que, segundo o texto, destruiria as características singulares da cidade.

“Antes que percebêssemos, a economia não era nada além de turismo”, disse Nagasawa. “A cidade não sabia qual era o limite”.

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Procurando conter alguns dos piores problemas, em 2018 a cidade reprimiu investidores que estavam arrebatando casas tradicionais em bairros residenciais para convertê-las em imóveis de aluguel por Airbnb.

Os estragos da pandemia

Na primavera de 2020, o Japão fechou as fronteiras. A mangueira de incêndio que jorrava dinheiro também se fechou, e Kyoto, que há muito sofria com problemas financeiros, ficou à beira da falência.

A cidade experimentou a vida sem turistas, e a combinação de coronavírus e contas no vermelho foi “um golpe duplo”, disse Kadokawa, o prefeito.

No início da pandemia, “as pessoas da cidade diziam: ‘Voltamos à antiga Kyoto, não é ótimo?’”, disse Toshinori Tsuchihashi, diretor do departamento de turismo da cidade.

A rua Hanamikoji, no turístico distrito de Gion, vazia Foto: Andrew Faulk/NYT

Mas, à medida que o dano econômico aumentava, os moradores “passaram a reconhecer a importância do turismo”.

Muitas empresas ainda precisam se recuperar. Antes da pandemia, era quase impossível conseguir uma reserva em um dos muitos restaurantes do Pontocho, uma viela charmosa paralela ao rio Kamo, no centro da cidade. Mas, em uma noite de fim de semana recente, muitos dos terraços com vista para as águas estavam vazios, e dava para ver muitas placas de “aluga-se” nas vitrines escuras.

Sem opções legais para impor limites rígidos aos visitantes, o governo espera diluir o tráfego para que fique menos concentrado nos mesmos horários e lugares. Os planejadores também estão discutindo como resolver problemas que irritam os moradores, como ônibus lotados. Até agora, no entanto, as iniciativas consistem principalmente em medidas brandas, como tentar ensinar aos visitantes a “moral” tradicional de Kyoto – e torcer pelo melhor.

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Nesse espírito, o mercado Nishiki decidiu que tentará encorajar os turistas, em vez de repreendê-los, trocando sua lista de “não” por uma lista de “por favor”. Os visitantes que digitalizam um grande código QR na entrada acessam uma lista de sugestões para aproveitar o mercado e são recompensados com Wi-Fi gratuito.

Kyoto está antecipando o inevitável retorno desses visitantes com uma mistura de saudade e apreensão, disse Takeshi Otsuki, gerente geral da gigante japonesa de viagens JTB.

“Esperamos que o número de visitantes aumente aos poucos e que tenhamos um pouso suave”, disse Otsuki.

TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

Visitantes vestidos com roupas tradicionais fazem selfie em frente ao templo Kiyomizu  Foto: Andrew Faulk/NYT
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