Caro leitor,
O presidente Jair Bolsonaro comemorou, nesta quinta-feira, 1.º, a confusão instalada na CPI da Covid, com o depoimento do vendedor de vacinas Luiz Paulo Dominghetti. Em conversas reservadas, Bolsonaro avaliou que o governo começa a “virar o jogo” para “desmascarar” o deputado Luis Miranda (DEM-DF), delator de um esquema de corrupção no Ministério da Saúde. Até mesmo dirigentes do Centrão, porém, dizem ser muito cedo para cantar vitória. Motivo: há uma guerra de versões na comissão parlamentar de inquérito sobre quem pagou e quem recebeu propina enquanto a pandemia crescia.
Dominghetti mostrou à CPI um áudio de uma conversa na qual Miranda aparece dizendo ter um “comprador com potencial de pagamento instantâneo”. Aos senadores, o policial-vendedor afirmou que a gravação fora enviada ao representante oficial da Davati Medical Supply no Brasil, Cristiano Alberto Carvalho. O áudio seria a prova de que o deputado do DEM quis negociar vacinas dentro do Ministério da Saúde, local onde trabalha seu irmão, Luis Ricardo Fernandes Miranda, chefe de importação do Departamento de Logística.
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“O comentário do Cristiano foi o seguinte: ele está lá fazendo a denúncia, mas aqui faz o inverso”, declarou Dominghetti. Após “invadir” a sessão da CPI para dizer que tudo aquilo era mentira, Miranda garantiu que a conversa se referia à compra de “luvas” por parte de sua empresa, não a imunizantes. O próprio Cristiano contestou a versão apresentada pelo vendedor de vacinas.
A CPI apreendeu o celular de Dominghetti e enviou a gravação para perícia da Polícia Legislativa, mas senadores do G7 – grupo de oposição composto por sete integrantes do colegiado – acreditam em “armação” por parte do Palácio do Planalto.
“Não venha achar que todo mundo aqui é otário nem pateta. Na nossa região, chapéu de otário é marreta e jabuti não sobe em árvore”, protestou o presidente da CPI, Omar Aziz (PSD-AM), dirigindo-se a Dominghetti. “Assim, do nada surge um áudio envolvendo o deputado Luis Miranda?” Presente à sessão, o senador Flávio Bolsonaro (Patriota-RJ), filho mais velho do presidente, imediatamente reagiu: “Mas o áudio é importante. O senhor não quer conhecer a verdade?”.
Bolsonaro e seus discípulos repetem à exaustação trecho do evangelho de João, capítulo 8, versículo 32 – “E conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará” –, sempre que a pressão bate à porta do Planalto. Trata-se de um clássico do governo, na hora do aperto, lembrar de Deus e recorrer às Forças Armadas.
Nesta quinta-feira, 1.º, aliás, pouco antes do espetáculo na CPI, o presidente foi à missa na Paróquia Nossa Senhora da Saúde, acompanhado de deputados da base aliada. Há um simbolismo no nome da igreja escolhida para que Bolsonaro vestisse o figurino de vítima dos “sete bandidos”, como ele se refere ao G-7.
Diante do avanço das investigações da CPI e de um “superpedido de impeachment” que desembarcou na Câmara, o Planalto montou uma estratégia para circunscrever a crise – a maior até agora no governo – a falcatruas cometidas por “pessoas” do Ministério da Saúde. Foi por isso que o então diretor de Logística, Roberto Dias, acabou demitido.
Dominghetti confirmou à CPI o que disse ao jornal Folha de S. Paulo: Dias lhe cobrou propina de US$ 1 por dose da vacina AstraZeneca, sob a alegação de que, para fechar contrato com o Ministério da Saúde, era preciso pagar pedágio.
Até agora, o líder do governo na Câmara, Ricardo Barros (Progressistas-PR), vem ganhando sobrevida nessa história, mas há no Planalto quem admita que sua situação ficará insustentável com o decorrer das investigações. Nos bastidores, ministros do “núcleo duro” do governo dizem que Bolsonaro espera o pedido de demissão de Barros. Para não fraturar ainda mais sua base de sustentação no Congresso, porém, aguarda que o senador Ciro Nogueira (PI), presidente do Progressistas, avalize a operação para substituir o líder mais adiante.
Sob suspeita de ser articulador de um esquema de desvio de dinheiro público em contratos para compra da vacina indiana Covaxin, Barros é personagem central das denúncias que atingem o governo e deporá à CPI na próxima quinta-feira, 8. Em 2019, ele apadrinhou a indicação de Roberto Dias, junto com o ex-deputado Abelardo Lupion (DEM-PR).
Ex-ministro da Saúde na gestão de Michel Temer e um dos manda-chuvas do Centrão, Barros também se destaca como rival do presidente da Câmara, Arthur Lira (Progressistas-AL), que muito antes desse escândalo já queria tirá-lo da cadeira de líder do governo. Lira virou o comandante do Centrão e não é de hoje que os dois disputam espaço em administrações. Correligionários dizem que o Progressistas é um partido pequeno demais para abrigar Barros e Lira.
Na prática, Bolsonaro está diante de uma difícil equação. Barros se reaproximou dele por meio de Flávio Bolsonaro e de Ciro Nogueira. Há relatos de que Flávio participou de negociações para a compra da Covaxin ao levar Francisco Maximiano – dono da Precisa Medicamentos, representante do laboratório Bharat Biotech – para uma reunião por videoconferência com o presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), Gustavo Montezano, em 13 de outubro do ano passado.
Flávio diz que o assunto da reunião não era vacina, mas, sim, um pedido de financiamento para a Xis Internet Fibra, outra empresa de Maximiano. Pouco depois daquele encontro virtual, o então ministro da Saúde Eduardo Pazuello tentou demitir Roberto Dias da Diretoria de Logística do Ministério da Saúde, como informou reportagem da rádio CBN. Não conseguiu porque Bolsonaro vetou.
O Estadão havia revelado, na ocasião, que Dias assinara contrato de R$ 133,2 milhões, com várias suspeitas de irregularidades, para compra de 10 milhões de kits de materiais para testes de covid.
A pedido de aliados, o presidente tentou emplacar Dias, naquele mesmo mês, em uma diretoria da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), mas acabou retirando a indicação, que já tramitava no Senado. No início de fevereiro, Barros afirmou ao Estadão que a Anvisa precisava ser “enquadrada” para eliminar exigências e agilizar a aprovação de vacinas contra a covid. Na avaliação do deputado, os diretores da Anvisa estavam “fora da casinha”.
Por “coincidência”, o contrato que o Ministério da Saúde fechou para a compra de 20 milhões de doses da indiana Covaxin, com preço de 1.000% mais alto do que seis antes, foi assinado algumas semanas depois daquela entrevista, em 25 de fevereiro.
Ao deixar o ministério, em março, Pazuello disse a seu sucessor, Marcelo Queiroga, que havia sido “jurado de morte” por políticos insatisfeitos por falta de “pixulé”. “Nós não podemos esquecer que o Ministério da Saúde é o foco, o alvo das pessoas políticas. Quem não sabe disso? A operação de grana com fins políticos acontece aqui”, constatou Pazuello em sua despedida, no dia 24 de março. O “sincericídio” de Pazuello, à época, causou revolta no Planalto. Mas o presidente diz que não sabia de nada.